Ilustração Dê Almeida
Começo, nesse mês
de agosto, a quinta edição de meu “Estúdio do Conto”, oficina regular de
narrativas breves que dirijo na Estação das Letras, Rio de Janeiro, sob a
inspiração firme de Suzana Vargas. Não atuo como professor — nada tenho, de fato, a
ensinar. Ao contrário: meu projeto não é transmitir regras, padrões, truques,
princípios. Mas ajudar os alunos — a cada um deles — a encontrar sua própria
voz. Aquilo que costumo chamar, de uma maneira simples, de “voz interior”.
Livros sempre vêm
em meu socorro. Lendo Há um mar no fundo de cada sonho,
de Ramon Nunes Mello (Verso Brasil), encontro, na página 51, um pequeno — e
iluminado — poema que ajuda a ilustrar meu projeto. O poema se chama A
mudança. Escreve Ramon, em versos curtos, mas certeiros: “está/
na força de prevalecer/ no ser”. E, logo abaixo, conclui: “ancorar a presença
no corpo”. E é tudo: o poeta não precisa dizer mais nada. Mudar, portanto, não
é transformar-se em outra coisa, mas chegar àquilo que já se é. “Cair em si”,
como costumo dizer. É tudo o que tento (não sei se consigo) ajudar meus alunos
(mas a palavra não é esta) a fazer.
A sociedade
contemporânea se ergue sobre o culto da novidade. Tudo deve ser inédito,
surpreendente, sem precedentes. Tudo deve sempre se mexer e se modificar. A
literatura ensina, no entanto, que o mais difícil não é transformar-se nisso ou
naquilo — escrever à maneira de fulano, ou de beltrano —, mas, em vez disso,
perseverar (Ramon diz: “ancorar”) naquilo que já se é. Chegar a si, livrando-se
de todos os adornos, automatismos, máscaras, disfarces que o mundo de hoje nos
obriga a vestir para sobreviver. “Prevalecer no ser” — para usar, mais uma vez,
as palavras de Ramon. Isto é: conservar-se, persistir, insistir, de maneira
intransigente e firme, naquilo que se é. Só assim a voz interior pode enfim
nascer.
Não é nada fácil
essa “queda em si”. O mundo contemporâneo nos diz, sempre, que devemos vestir a
última grife, adotar o último estilo, experimentar a última sensação. Em outras
palavras: que devemos pular para fora de nós mesmos — o que não deixa de
configurar uma forma dócil, e voluntária, de traição. A palavra chave de nosso
mundo é “adrenalina” — o hormônio que eleva a pressão sanguínea e estimula as
respostas fisiológicas rápidas. Saltar para fora de si — exibir-se numa grande
performance — é o que todos desejam. É o que nosso mundo miserável exige de
nós. Ali, queimando-se no fogo da adrenalina, muitos acreditam se realizar.
Cada um sustenta as próprias palavras. E é esse peso, da palavra
própria, que confere singularidade à escrita.
Na contramão,
resistindo como podem, com leveza e lentidão, caminham a literatura e a arte. A
luta exige não apenas persistência, mas vigor. Repito Ramon: “está/ na força de
prevalecer/ no ser”. Em vez de atirar-se para fora mergulhando em experiências
da moda, em vez de embriagar-se com os apelos do mercado ou das “aventuras
radicais”, persistir em si, “ancorar” (Ramon) no próprio corpo e dali não
arrastar pé. É o que tento fazer com meus alunos — mas a palavra, em
definitivo, não é essa — alunos —, e admito que não sei que palavra usar.
Talvez deva dizer apenas: “aqueles que me acompanham”. Companheiros, portanto.
Parceiros.
O que tentamos
fazer juntos? Ler e reler e reler, discutir e discutir e discutir, sentir ao
esgotamento os contos que cada um dos participantes está produzindo. Exercitar,
portanto, a experiência da parceria. É um trabalho coletivo — uma espécie de
escrita grupal, talvez, embora a última decisão, é claro, fique sempre para o
autor. Sim: porque investimos firme na ideia de autoria, outra noção, aliás,
desprestigiada pelos contemporâneos, que preferem ver os escritores como
“produtores de texto” — coelhinhos que reproduzem obras em série. No estúdio,
cada um é, ao contrário, dono de sua voz. Com a ajuda de todos, devem tentar
encontrá-la. Cada um sustenta as próprias palavras. E é esse peso, da palavra
própria, que confere singularidade à escrita.
Logo: não
trabalho com apostilas, manuais, compêndios, livros de referência. Não tenho
princípios, ou métodos didáticos. Não existem exercícios, provas, correções,
notas, aferições. Nada que se pareça com uma escola. Nada mesmo. Talvez uma
antiescola. A ideia não é chegar ao “certo”, mas ao que Ramon chama de
“presença do corpo”. Cada um luta para voltar a si — como de um desmaio. Cada
um se empenha, com a ajuda de todos, em perseguir não a moda, ou a correção, ou
“o que vende”, mas suas próprias palavras. Nenhum valor às listas de mais
vendidos, às premiações, às consagrações: a escrita é uma experiência
absolutamente individual, e como tal deve ser experimentada. Como um segredo
inegociável.
É muito belo
ouvir a divergência de opiniões, de leituras, de interpretações. É muito
estimulante saber que, enquanto lemos e discutimos, apostamos em um valor —
hoje infelizmente tão ameaçado: o pluralismo. Quer dizer: a liberdade para cada
um ser o que é, e nada mais. Retrocedendo à página 24 do livro de Ramon,
esbarro em outro poema, Fé, que me ajuda a
pensar. “Todos os livros têm caráter/ de urgência”, ele escreve. “O testemunho
de um/ sujeito/ diante do abismo”. É do abismo do si que se trata. Esse “mundo
sem fundo” que, inocentes, carregamos dentro de nós. Por isso, todo livro é um
livro interminável. O encontro com a própria voz é uma experiência de risco,
que se assemelha a lançar-se de um despenhadeiro. Só que você não cai para
fora, cai para dentro. Cai em si — volto a dizer.
Nem todos os
participantes de meu estúdio conseguem se entregar. Alguns resistem — outros
partem antes do tempo. Alguma coisa, mesmo assim, deixam para trás. Está no
poema seguinte de Ramon, batizado Viagem: — “deixou o/
coração/ desnudado sobre/ a cama/ partiu”. Alguma coisa sempre se revela.
Alguma coisa fica — e fica para todos. Eis a vantagem da experiência coletiva:
cada um colhe o que pode, do jeito que pode, no momento em que pode. As
descobertas são lentas e imprevisíveis. Daí o nome: estúdio. “Espaço onde os
artistas projetam ou realizam seus trabalhos”, o dicionário define. Não basta
fazer: é preciso se arriscar a fazer (é preciso projetar). O dicionário oferece
ainda bons sinônimos para o verbo “projetar”: “atirar-se à distância”,
“arremessar-se”, “lançar-se”. Eis o abismo do qual não se pode fugir.
Desfiladeiro interior, onde as verdadeiras palavras nos esperam. São essas
palavras que, juntos, enfrentamos.
JOSÉ CASTELLO
É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar,
entre outros livros. Vive em Curitiba (PR).