quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Ri, palhaço

Nossa situação é como a ópera “Pagliacci”, uma tragicomédia, burlesca e triste ao mesmo tempo

Depois da provável cassação da Dilma pelo Senado, ainda falta um ato para que se possa dizer que la commedia è finita: a absolvição do Eduardo Cunha. Nossa situação é como a ópera “Pagliacci”, uma tragicomédia, burlesca e triste ao mesmo tempo. E acaba mal. Há dias li numa página interna de um grande jornal de São Paulo que o Temer está recorrendo às mesmas ginásticas fiscais que podem condenar a Dilma.

O fato mereceria um destaque maior, nem que fosse só pela ironia, mas não mereceu nem uma chamada na primeira página do próprio jornal e não foi mais mencionado em lugar algum. A gente admira o justiceiro Sérgio Moro, mas acha perigoso alguém ter tanto poder assim, ainda mais depois da sua espantosa declaração de que provas ilícitas são admissíveis se colhidas de boa-fé, inaugurando uma novidade na nossa jurisprudência, a boa-fé presumida.

Mas é brabo ter que ouvir denúncias contra o risco de prepotência dos investigadores da Lava-Jato da boca do ministro do Supremo Gilmar Mendes, o mesmo que ameaçou chamar o então presidente Lula “às falas” por um grampo no seu escritório que nunca existiu, e ficou quase um ano com um importante processo na sua gaveta sem dar satisfação a ninguém. As óperas também costumam ter figuras sombrias que se esgueiram (grande palavra) em cena.

O Eduardo Cunha pode ganhar mais tempo antes de ser julgado, tempo para o corporativismo aflorar, e os parlamentares se darem conta do que estão fazendo, punindo o homem que, afinal, é o herói do impeachment. Foi dele que partiu o processo que está chegando ao seu fim previsível agora. Pela lógica destes dias, depois da cassação da Dilma, o passo seguinte óbvio seria condecorarem o Eduardo Cunha. Manifestantes: às ruas para pedir justiça para Eduardo Cunha!

Contam que um pai levou um filho para ver uma ópera. O garoto não estava entendendo nada, se chateou e perguntou ao pai quando a ópera acabaria. E ouviu do pai uma lição que lhe serviria por toda a vida: — Só termina quando a gorda cantar. Nas óperas sempre há uma cantora gorda que só canta uma ária. Enquanto ela não cantar, a ópera não termina.

Não há nenhuma cantora gorda no nosso futuro, leitor. Enquanto ela não chegar, evite olhar-se no espelho e descobrir que, nesta ópera, o palhaço somos nós.

Luís Fernando Veríssimo 

Minha crônica sobre a ultima de Fernando Sabino

Eu me emociono facilmente. Mas isso não tira o mérito do Sabino que procurava um tema pitoresco ou irrisório no cotidiano das pessoas para escrever "A ultima crônica" e coroar mais um ano desse exercício. Faltava-lhe inspiração e a caminho de casa, até para adiar o momento de sentar e escrever, entrou num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. A falta de inspiração o assustava. Foi quando um negro magrinho acompanhado da mulher e filha de fita cor de rosa espetada no cabelo encaracolado, entraram no estabelecimento e foram sentar silenciosamente no fundo à mesa ao lado da parede espelhada. A garotinha com seu vestido branco e pobre estava visivelmente tensa. Prestava atenção a tudo. Sentada, suas perninhas não alcançavam o chão, mas também não balançavam. O pai discretamente tira do bolso algumas notas de dinheiro e confere. Ao garçom fez o pedido apontando para o balcão que em seguida levou um pratinho com uma única pequena fatia de bolo amarelo, e uma Coca-Cola. Os três pareciam hipnotizados com a fatia recém chegada, quando a mãe quebrando a hipnose procura aflita alguma coisa na bolsa que estava no colo. Retira três pequenas velas brancas e as coloca na fatia do bolo. O pai se apressa a riscar um fósforo e acendeu-as. A garotinha, com o queixo na altura do mármore cinza da mesa, assopra apagando de pronto. Bate palpa, e balbucia algo que os pais acompanham: "Parabéns a você..."A mãe sorrindo com a alegria da filha pega as velas de volta e guarda na bolsa. A menina com as duas mãos pega a fatia de bolo. O pai que até aquele momento não havia se dado conta do olhar do Sabino, ao cruzarem os olhos, tentou abaixa-los, mas resolveu encarar, e em seguida abriu um largo sorriso.Termina a crônica dizendo que era assim que gostaria que fosse a ultima crônica: que fosse pura como aquele sorriso. E eu me emocionei.
 
Eduardo P. Lunardelli

Leandro Karnal

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Frase

"O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são."

 Protágoras

"É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo".

Clarice Lispector

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Alguns subornos e sacanagens do futebol narrados em Fuimos Campeones, de Ricardo Gotta


Há algumas semanas, numa conversa, toquei naquele malfadado Argentina 6 x 0 Peru da Copa de 1978. Depois daquilo, seguiu-se uma pequena discussão e acabei pedindo para um amigo trazer de Buenos Aires o livro Fuimos Campeones, do jornalista Ricardo Gotta. Olha, tomei um susto. A reportagem tem 300 páginas de uma pesquisa imensa e muito séria. Quando a gente dá uma olhada no volume, ele mais parece uma tese de doutorado, tamanhas são as referências comprobatórias de tudo o que diz e, bem, houve suborno sim. Nem todos foram pagos, apenas alguns como o zagueiro Manzo e o presidente milico do Peru, dentre outros.

Começo por um resumo de um dos capítulos finais do livro. Depois de um trecho especialmente cruel para com a Argentina, Gotta resolve, sob um formato bem cronístico e platino, botar merda no ventilador. Achei divertidíssimo. O resumo é meu, as informações, de Gotta.

Na Copa da Itália de 1934, o árbitro belga Louis Baert no primeiro jogo e o suíço Rene Merced na revanche, roubaram descaradamente a Espanha em favor da Itália. Não temos filmes para comprovar, mas foi em 1934 que a coisa começou “em nível de Copa”… Na Copa de 2006, o espanhol Luis Medina Cantalejo deu um pênalti que nunca foi visto. Aconteceu aos 94 minutos de Itália x Austrália e salvou os primeiros, que acabaram campeões. Cantalejo foi sumido… Houve um Brasil x Bélgica nas oitavas-de-final de 2002 e mais tantos “erros” em Copas a favor do Brasil quem nem é bom começar.

Mas esqueçamos os juízes. Se em 1978, a FIFA marcou jogos de equipes envolvidas na mesma decisão da mesma vaga em horários diferentes, ela repetiu o disparate da Copa de 1982. O resultado foi Alemanha 1 x 0 Áustria. No dia anterior, a Argélia suara sangue para vencer o Chile por 3 x 2 sem imaginar que o resultado de Alemanha 1 x 0 Áustria classificaria ambos, deixando-a fora. Os argelinos viram Hrubesch marcar o gol aos 10 do primeiro tempo e depois assistiram 80 minutos de um jogo em que nenhum dos times chegaram à área alheia. No minutos finais, os técnicos Jupp Derwall e Georg Schmidt sorriam UM PARA O OUTRO. Os argelinos, indignados, foram à FIFA pedir a eliminação de ambas as seleções. Que piada! O “jogo” é conhecido como o Pacto Del Molinón e diversos jogadores, como o alemão Briegel, confirmaram o acerto.

É famoso na Europa o caso do goleiro camaronês Thomas N`Kono que resvalou da forma mais impossível, permitindo ao italiano Graziani marcar o gol que fez com que a Itália – novamente campeã daquela Copa – passasse da primeira fase… Tudo foi pago por um enorme carregamento de material esportivo que seguiu para o país africano. Quem ficou fora? Ora, o Peru de Oblitas, Cubillas e Quiroga…

Em 2001, na fase classificatória para o Mundial da França, o Uruguai precisava de um empate para chegar à repescagem. Bem no começo do jogo, Darío Silva fez 1 x 0 para o Uruguai e Claudio López empatou minutos depois. E então ninguém mais chutou a gol. Gotta diz que houve um acordo em pleno campo entre um jogador da Argentina e um amigo seu, uruguaio. Tudo em casa.

Há vários River Plate x Argentinos Juniors suspeitos. O maior ocorreu em 1997 na última rodada da Apertura. O River precisava de um empate para ganhar o campeonato. A torcida do Boca viu o Argentinos passear em campo, sem dar combate. Resultado: 1 x 1. Isto foi uma vingança, pois, em 1991, o Boca tirou o River da Libertadores, empatando com o Oriente Petrolero da Bolívia na Bombonera. Se ganhasse, classificaria o River. A hinchada gritava no lendário estádio: “Hay que empatar / hay que empatar / porque si no van a cobrar”. Paradoxalmente, o então presidente do Boca declarou: “Foi o fato desportivo mais triste de minha vida”. Isso anos depois, claro.

1974. Final da primeira fase da Copa da Alemanha. A Argentina precisava imperiosamente vencer de goleada o Haiti, mas a Polônia, já classificada em primeiro lugar, tinha que ganhar da Itália. Para que, se já era a campeã do grupo? Um empresário argentino com negócios na Polônia foi escalado para abordar alguém da delegação polonesa. O escolhido foi Gadocha, outro bom negociante. O argentino perguntou a Gadocha se “Polonia iba salir a ganar”. Ouviu o a seguinte resposta: “Isso dependerá dos argentinos”. Como a AFA não tinha cash, cada jogador argentino deu US$ 1000,00, uma fortuna para jogadores que atuavam atrás do Muro. Sim, fizeram uma vaquinha. Os polacos foram com tudo e ganharam da Itália, enquanto a Argentina fazia 4 x 1 no Haiti. Tudo certo. No dia seguinte, Gadocha avisou a seus companheiros que a grana viria no dia em que a Copa finalizasse para eles, antes da viagem de volta, para não dar na vista. Após vencer o Brasil por 1 x 0 e de conquistar o terceiro lugar, Gadocha simplesmente desapareceu. Com o dinheiro.

Em 1984, a Argentina mostrou como se domina um adversário, no caso o Paquistão. Era a Copa Merdeka, em Kuala Lumpur. A tarefa era complicada. Todos sabiam que o placar seria uns 18 x 0, talvez 32 x 0, mas um apostador de Hong Kong desejava que fosse Argentina 2 x 1 Paquistão. Toda a delegação argentina recebeu US$ 500,00 por cabeça para fazer o serviço. Deu 2 x 1, para pasmo e indignação da nação argentina. Todos os membros da delegação receberam penas que variaram entre um e três anos.

Então, a conversa com Manzo em 1998, vinte anos após o suborno de 1978, ele bêbado e chorando, num bar da pequena San Luis de Cañete, sua cidade natal, não deve surpreender tanto assim:

– Acá mismo, em mi pueblo, cuando se habla de fútbol, me dicen “eres tu que te vendiste”.

Ele confessou. Deu muito na vista. Imaginem que foi contratado no segundo semestre de 1978 pelo Vélez como forma de pagamento!

– La mucha plata que gané em el fútbol la perdi por mujeriego…

Não parece. Tanto que, depois de ter confessado o suborno, exilou-se na Itália, onde vive aparentemente muito bem.

Mais diversão? Vejam abaixo duas participações do zagueiro direito Rodulfo Manzo nos dois primeiros gols da Argentina. No primeiro, ele é o último jogador que Kempes dribla, antes de desviar de Quiroga (o qual não participou do esquema de suborno) e, no segundo, é ele quem salta na frente de Tarantini, que marca de cabeça, com os dois pés no chão, meio agachado…

Então, aos 5 segundos deste filme, Manzo é “driblado” por Kempes. É aquele que fica caído.

E aos 15 segundos, “salta” com Tarantini…

Do blog do Milton Ribeiro

Hora do lanche

Doce de caju com ameixa

Será que o trabalho é igual?

Um mecânico está desmontando o motor de uma moto, quando vê na oficina um cirurgião cardiologista muito conhecido. Ele está olhando o mecânico trabalhar. O mecânico para e pergunta: – Ei, doutor, posso lhe fazer uma pergunta?

O cirurgião, um tanto surpreso, concorda e vai até a moto na qual o mecânico está trabalhando. O mecânico se levanta e começa: – Doutor, olhe este motor. Eu abro seu coração, tiro válvulas, conserto-as, ponho-as de volta e fecho novamente. Quando termino, ele volta a trabalhar como se fosse novo. Como é então que eu ganho tão pouco e o senhor tanto, quando nosso trabalho é praticamente o mesmo?

O cirurgião dá um sorriso, se inclina e fala baixinho ao mecânico: – Tente fazer isso com o motor funcionando! 

Prof. Menegatti 

Futebol sem bola

Os loucos resolveram jogar uma partida de futebol. Detalhe: sem bola. Ficaram correndo, chutando e comemorando os gols durante horas, mas um deles se recusou a participar do jogo. Isso chamou a atenção do diretor do hospício, que foi falar com ele: - Ei, rapaz. Por que você não vai jogar futebol com os seus amigos? - Eu não! - respondeu ele - Não sou louco! Sensibilizado com a resposta, o diretor resolveu dar alta para o rapaz. Com certeza ele não estava louco. Depois que o louco são foi para casa, o diretor voltou até o pátio para falar com os internos: - E aí, quanto está o jogo? - Cinco a zero pra geeeeente! - gritou um louco. - E o amigo de vocês, não quis participar do jogo por quê? - Ah, ele disse que não joga com bola murcha!

domingo, 28 de agosto de 2016

A queda em si



 Ilustração Dê Almeida

Começo, nesse mês de agosto, a quinta edição de meu “Estúdio do Conto”, oficina regular de narrativas breves que dirijo na Estação das Letras, Rio de Janeiro, sob a inspiração firme de Suzana Vargas. Não atuo como professor — nada tenho, de fato, a ensinar. Ao contrário: meu projeto não é transmitir regras, padrões, truques, princípios. Mas ajudar os alunos — a cada um deles — a encontrar sua própria voz. Aquilo que costumo chamar, de uma maneira simples, de “voz interior”.

Livros sempre vêm em meu socorro. Lendo Há um mar no fundo de cada sonho, de Ramon Nunes Mello (Verso Brasil), encontro, na página 51, um pequeno — e iluminado — poema que ajuda a ilustrar meu projeto. O poema se chama A mudança. Escreve Ramon, em versos curtos, mas certeiros: “está/ na força de prevalecer/ no ser”. E, logo abaixo, conclui: “ancorar a presença no corpo”. E é tudo: o poeta não precisa dizer mais nada. Mudar, portanto, não é transformar-se em outra coisa, mas chegar àquilo que já se é. “Cair em si”, como costumo dizer. É tudo o que tento (não sei se consigo) ajudar meus alunos (mas a palavra não é esta) a fazer.

A sociedade contemporânea se ergue sobre o culto da novidade. Tudo deve ser inédito, surpreendente, sem precedentes. Tudo deve sempre se mexer e se modificar. A literatura ensina, no entanto, que o mais difícil não é transformar-se nisso ou naquilo — escrever à maneira de fulano, ou de beltrano —, mas, em vez disso, perseverar (Ramon diz: “ancorar”) naquilo que já se é. Chegar a si, livrando-se de todos os adornos, automatismos, máscaras, disfarces que o mundo de hoje nos obriga a vestir para sobreviver. “Prevalecer no ser” — para usar, mais uma vez, as palavras de Ramon. Isto é: conservar-se, persistir, insistir, de maneira intransigente e firme, naquilo que se é. Só assim a voz interior pode enfim nascer.

Não é nada fácil essa “queda em si”. O mundo contemporâneo nos diz, sempre, que devemos vestir a última grife, adotar o último estilo, experimentar a última sensação. Em outras palavras: que devemos pular para fora de nós mesmos — o que não deixa de configurar uma forma dócil, e voluntária, de traição. A palavra chave de nosso mundo é “adrenalina” — o hormônio que eleva a pressão sanguínea e estimula as respostas fisiológicas rápidas. Saltar para fora de si — exibir-se numa grande performance — é o que todos desejam. É o que nosso mundo miserável exige de nós. Ali, queimando-se no fogo da adrenalina, muitos acreditam se realizar.

Cada um sustenta as próprias palavras. E é esse peso, da palavra própria, que confere singularidade à escrita.

Na contramão, resistindo como podem, com leveza e lentidão, caminham a literatura e a arte. A luta exige não apenas persistência, mas vigor. Repito Ramon: “está/ na força de prevalecer/ no ser”. Em vez de atirar-se para fora mergulhando em experiências da moda, em vez de embriagar-se com os apelos do mercado ou das “aventuras radicais”, persistir em si, “ancorar” (Ramon) no próprio corpo e dali não arrastar pé. É o que tento fazer com meus alunos — mas a palavra, em definitivo, não é essa — alunos —, e admito que não sei que palavra usar. Talvez deva dizer apenas: “aqueles que me acompanham”. Companheiros, portanto. Parceiros.

O que tentamos fazer juntos? Ler e reler e reler, discutir e discutir e discutir, sentir ao esgotamento os contos que cada um dos participantes está produzindo. Exercitar, portanto, a experiência da parceria. É um trabalho coletivo — uma espécie de escrita grupal, talvez, embora a última decisão, é claro, fique sempre para o autor. Sim: porque investimos firme na ideia de autoria, outra noção, aliás, desprestigiada pelos contemporâneos, que preferem ver os escritores como “produtores de texto” — coelhinhos que reproduzem obras em série. No estúdio, cada um é, ao contrário, dono de sua voz. Com a ajuda de todos, devem tentar encontrá-la. Cada um sustenta as próprias palavras. E é esse peso, da palavra própria, que confere singularidade à escrita.

Logo: não trabalho com apostilas, manuais, compêndios, livros de referência. Não tenho princípios, ou métodos didáticos. Não existem exercícios, provas, correções, notas, aferições. Nada que se pareça com uma escola. Nada mesmo. Talvez uma antiescola. A ideia não é chegar ao “certo”, mas ao que Ramon chama de “presença do corpo”. Cada um luta para voltar a si — como de um desmaio. Cada um se empenha, com a ajuda de todos, em perseguir não a moda, ou a correção, ou “o que vende”, mas suas próprias palavras. Nenhum valor às listas de mais vendidos, às premiações, às consagrações: a escrita é uma experiência absolutamente individual, e como tal deve ser experimentada. Como um segredo inegociável.

É muito belo ouvir a divergência de opiniões, de leituras, de interpretações. É muito estimulante saber que, enquanto lemos e discutimos, apostamos em um valor — hoje infelizmente tão ameaçado: o pluralismo. Quer dizer: a liberdade para cada um ser o que é, e nada mais. Retrocedendo à página 24 do livro de Ramon, esbarro em outro poema, , que me ajuda a pensar. “Todos os livros têm caráter/ de urgência”, ele escreve. “O testemunho de um/ sujeito/ diante do abismo”. É do abismo do si que se trata. Esse “mundo sem fundo” que, inocentes, carregamos dentro de nós. Por isso, todo livro é um livro interminável. O encontro com a própria voz é uma experiência de risco, que se assemelha a lançar-se de um despenhadeiro. Só que você não cai para fora, cai para dentro. Cai em si — volto a dizer.

Nem todos os participantes de meu estúdio conseguem se entregar. Alguns resistem — outros partem antes do tempo. Alguma coisa, mesmo assim, deixam para trás. Está no poema seguinte de Ramon, batizado Viagem: — “deixou o/ coração/ desnudado sobre/ a cama/ partiu”. Alguma coisa sempre se revela. Alguma coisa fica — e fica para todos. Eis a vantagem da experiência coletiva: cada um colhe o que pode, do jeito que pode, no momento em que pode. As descobertas são lentas e imprevisíveis. Daí o nome: estúdio. “Espaço onde os artistas projetam ou realizam seus trabalhos”, o dicionário define. Não basta fazer: é preciso se arriscar a fazer (é preciso projetar). O dicionário oferece ainda bons sinônimos para o verbo “projetar”: “atirar-se à distância”, “arremessar-se”, “lançar-se”. Eis o abismo do qual não se pode fugir. Desfiladeiro interior, onde as verdadeiras palavras nos esperam. São essas palavras que, juntos, enfrentamos.

JOSÉ CASTELLO

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros. Vive em Curitiba (PR).
(Disponível em: http://rascunho.com.br/colunistas/josecastello/a-queda-em-si. Acesso em: 25 agosto 2016.)

Infância

Alguém lembra ou sabe para serve isso?


A TV Globo exibiu a entrevista feita por Geneton Moraes Neto com Geraldo Vandré, feita no dia em que este completou 75 anos. Foi ótimo para desmentir os boatos que ouvi nas últimas décadas: Vandré ficou doido, Vandré aderiu aos militares, Vandré está com depressão profunda, Vandré perdeu a memória, Vandré está incoerente. Pelo contrário. O autor de “Ventania” se tornou um cara ensimesmado, solitário, introvertido. Isto se soma à idade e à desilusão com a música para dar uma imagem diferente do cantor passionário e grandiloquente que arrastou multidões. Mas Vandré mostra em toda a entrevista ser um sujeito tranquilo, articulado, de vez em quando bem-humorado e brincalhão. Ajuda a desmontar algumas das lendas que se criaram em torno dele, recusa com sensatez e bons argumentos a pecha de “antimilitarista”, rejeita o ambiente de showbiz que se criou para a MPB de hoje. Foi uma das entrevistas mais sensatas e equilibradas que vi de um músico brasileiro, mesmo discordando de algumas de suas opiniões. Vandré só parece um excêntrico porque não exibe o comportamento dos compositores e cantores de hoje, cheios de frasezinhas espirituosas, caras e bocas, humildade fingida, etc. É um cara que olha de frente para a câmara e diz: “Perdi a guerra, paciência, a vida continua”.

Vandré era de uma faixa radical da MPB que unia de um lado a visão-do-mundo marxista e nacionalista, e do outro a curiosidade pelas formas populares e “folclóricas” de escrever e compor. Suas melhores canções pertencem a esta linha: “Disparada”, “Caminhando”, “Cantiga brava”, “Aroeira”, “Requiem para Matraga”, “Porta Estandarte” e tantas outras. Mas suas canções de amor, bem trabalhadas e de melodias intensas, são igualmente fortes: “Quem quiser encontrar o amor”, “Pequeno concerto que virou canção”, etc. Seu talento ninguém discute. O que se discutiu na época foi sua aposta kamikaze no confronto ideológico. Compositores igualmente engajados (Chico Buarque, Edu Lobo, Sérgio Ricardo, etc.) souberam recolher as velas e se manter à tona na hora da tempestade. Vandré tentou beber a tempestade. Não conseguiu.

Vandré diz que a única coisa da MPB que lhe chamou a atenção nas últimas décadas foi o Movimento Armorial. Isto mostra que seu esquerdismo pode ter se atenuado com o tempo, seu nacionalismo não. O Armorial não faz a música que ele fazia, mas certamente faz a música que ele gosta de ouvir. Vandré não aceitava a guitarra, não aceitava o Tropicalismo, as roupas de plástico, a parafernália pop. Perdeu a guerra, porque foi esse modelo que se impôs na música brasileira. Não como modelo único (ainda há espaço para numerosos seguidores do próprio Vandré), mas como modelo predominante, preferido pela mídia e enriquecedor. Vandré tem suas razões para balançar a cabeça e dizer: “Tô fora”. O que fez é inapagável, definitivo, mas ele não quer voltar a fazê-lo. Vandré foi o artista de um momento único, e passou com esse momento.

Braulio Tavares (blog Mundo Fantasmo)