sexta-feira, 26 de junho de 2015

“Olho gordo”: uma pequena nota sobre a inveja, o medo e o ódio na televisão

Faz tempo que não escrevo nada sobre televisão. Meu livro Olho de Vidro, publicado em 2011 (indicado em 2012 ao Prêmio Jabuti), me fez perguntar por que as pessoas que veem televisão em geral não o leram (o livro teve duas edições mas, segundo muitos, era muito complicado para quem está acostumado a ver televisão e não tem o hábito de ler).
A resposta está dada. No Brasil a televisão substituiu os livros. Isso não quer dizer que quem vê televisão não lê livros, mas quer dizer que existe uma cultura em que a televisão tem um poder tão incrível que dispensa de outras experiências “intelectuais”.
Não se enganem, a televisão é uma experiência intelectual, uma experiência de conhecimento, só que empobrecida.
No livro eu falava da cultura brasileira da inveja. A televisão mexe com a nossa inveja. Por isso eu usei a metáfora do “olho de vidro”. Não apenas porque essa metáfora explica o lugar da televisão como “prótese de conhecimento”, mas porque o olho de vidro tem a estrutura da inveja. A televisão é um “olho gordo” de vidro.
Nam June Paik. TV is Kitsch, 1996
Nam June Paik. TV is Kitsch, 1996
 A inveja é um tipo de desejo impotente. O invejoso é sempre impotente. Ele olha para quem ele inveja e se sente menor, daí a sua raiva, o seu rancor, o seu ressentimento. Ele gostaria de ser o outro, mas não é. A vida do invejoso é muito triste porque ele não pode fazer nada. Ele não pode ser outra pessoa, ele não pode ser melhor do que é. Mas ele está só delirando, porque ele poderia aprender a se desejar e ser uma pessoa diferente.
O telespectador é aquela pessoa que é orientada à inveja, não ao desejo. Qual a diferença entre uma coisa e outra? É que a inveja faz você imitar o outro enquanto no desejo você pode se inventar. O invejoso não quer ser uma pessoa singular. Em vez de olhar para seu corpo, sua roupa, seu trabalho, sua vida em geral como se fosse uma obra de arte a ser construída, ele se olha como um erro que só pode ser consertado por imitação de um modelo. É esse modelo que ele inveja. Então ele imita.
A imitação faz comprar. Comprar, aliás, já é um ato de imitação. O outro comprou e eu também compro. O outro usa e eu também uso. No extremo, o outro vê um filme, uma novela, e eu também vejo. Assim a pessoa se sente poderosa, fazendo a “coisa certa”, tendo vantagem. Chamei de “desejo de audiência” esse processo de imitação que é o mecanismo social da inveja.
A televisão tenta administrar os afetos das pessoas. A inveja é um afeto bem primitivo. Digo “afeto”, mas não sei se as pessoas entendem bem o que é isso. Um dia eu tento escrever mais sobre. Hoje, vou usar o termo sentimento, porque o sentimento todo mundo entende. Quero dizer com isso que a cada época a televisão administra os nossos sentimentos. A inveja é básica na televisão. É o pano de fundo, o chão, a sustentação da experiência que a gente tem com a TV. Mas hoje em dia outros sentimentos estão em jogo.
 Medo e Ódio
Em nossa sociedade quem quer ter poder usa o medo contra a população. Fala-se de “cultura do medo”. Ela é introduzida todo dia nas casas das famílias por meio da televisão.
As pessoas não sabem como a televisão lhes faz mal. Quem tem preconceito contra maconha, deveria se questionar porque a maconha pode ser uma coisa boa para muitas pessoas. Seria bom tentar entender isso. Mas a televisão, do jeito que ela é usada, não faz bem. Ela tem um efeito de uma droga muito pesada e destrutiva.
Um preconceito não é bom, mas é incrível como as pessoas erram o alvo do preconceito. Porque se fossem usar aquela parte do preconceito que é um fundo de crítica para entender as coisas, deviam usar para entender a televisão. As pessoas não fazem ideia dos malefícios que a televisão causa em suas vidas. Um malefício político, porque de tanto ver televisão são convencidas a ficar em casa trancadas. Veem bandidos na televisão e acham que, diante da televisão, estão a salvo deles. A televisão lhes oferece imagens de crimes e, ao mesmo tempo, oferece a prisão diante da tela dentro de casa. Pensemos se isso não faz sentido.
As pessoas são convencidas diante da tela a pensar que a televisão vai lhes dar tudo o que elas precisam saber. As pessoas que ficam sentadas na frente da tela, não sabem o que está lhes acontecendo. Não sabem que perderam a sua capacidade de entender. Não sabem que simplesmente repetirão o que a televisão lhes deu. Mas erram também porque pensam que a televisão lhes deu alguma coisa de graça, quando é óbvio que a televisão apenas lhes vendeu alguma coisa. E lhes vendeu coisas horríveis como preconceitos. E medo, muito medo, porque sem medo a televisão mesma já não sobreviveria como a indústria e o mercado que ela é.
A tela da televisão é uma vitrine. Isso todo mundo também sabe. Mas é uma vitrine que vende sentimentos. Então as pessoas ficam paradas diante dela se enchendo de inveja e de medo. E isso traz muitas vantagens para a vida como um todo: se as pessoas não tivessem esses sentimentos elas fariam outras coisas da vida e muitas coisas seriam diferentes. Mas a televisão promove a distração e um tipo de relaxamento político. Ao mesmo tempo que promove excitação para o consumo. A televisão é uma prótese também dos sentimentos. Ou seja, ninguém precisa sentir outra coisa senão o que ela propõe sentir. Quem vê televisão, seja novela, jornal, ou reality show, tem que ficar atento quanto ao conteúdo e à forma do que está sendo convencido.
No Brasil atual, o poder tem usado o ódio. E a televisão que é um braço do Estado e do Capital, começa a vender ódio. O solo fértil do ódio é a inveja. O ódio é a concretização da inveja. Por que o ódio é a ação violenta por palavras e atos. Um invejoso compra o ódio sem se preocupar com o preço que paga. Porque, por meio do ódio, ele pode destruir aquilo que ele inveja. E aplacar seu próprio vazio.
As ações do ódio estão em alta no meio televisivo e também nas redes sociais que imitam a televisão (num gesto de multiplicação invejosa…).
Os que gritam contra os meninos de periferia, contra negros, contra transexuais, contra mulheres, contra indígenas, escondem, com seu ódio, uma inveja de fundo. Eles olham o mundo com olhos gordos de vidro.
Na base da inveja há um embotamento subjetivo, uma burrice emocional mesmo. O invejoso é um embotado que não consegue inventar uma vida de desejo. Ele não vê nada, porque usa olhos de vidro. Então ele se realiza por meio da violência porque não consegue ver, nem sentir nada melhor. Ele aprendeu isso diante da tela da televisão.
A gente deveria sentir pena do invejoso, porque ele foi criado no medo. Mas o ódio que é um olho gordo explosivo destrói e, contra ele, só muita ética e muita política.
Por isso, nesse Brasil, temos que tomar outro rumo. Aprender a ver com melhores olhos os outros que sofrem, aprender a olhar mais para si mesmo.
Márcia Tiburi
Texto publicado originalmente na Revista Cult

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