O Brasil está acordando para algo que fingia não saber. O país, continuando na mesma batida, terá uns 50% de população evangélica em poucos anos. Muita gente está em pânico porque o país não cabe em seus manuais inteligentinhos, distribuídos em restaurantes étnicos.
Mas o assunto é sério. Vamos por partes. Entendo a ira dos "irmãos". Sentem que o "Cristo com seios" da Parada Gay é um desrespeito à figura santa -um pouco como os muçulmanos se sentem com as charges do profeta Maomé-, ainda que eu esteja seguro de que a bela transexual que fez a performance não quis com isso desrespeitar Cristo, pelo contrário, fez uma releitura teológica da função salvífica de Jesus.
Mas a pergunta que não quer calar é: cadê os inteligentinhos que escreveram artigos na época do "case 'Charlie Hebdo'", dizendo que deveríamos respeitar as religiões e as culturas alheias? Cadê a moçadinha café com leite que disse que a função da mídia é favorecer a integração cultural e evitar conflitos? Cadê os bonitinhos que disseram que os cartunistas não respeitaram o sacrossanto "outro"?
Cadê eles os que não saíram em defesa dos "irmãos" dizendo que não se deve brincar com a fé dos outros? Evangélicos não merecem o mesmo "respeito com o outro" que os muçulmanos? O fato é que essa gente inteligentinha é inconsistente mesmo, a menos que esteja falando de comida peruana. No fundo, são um poço de preconceito contra o cristianismo.
Entendo a ira dos evangélicos porque Jesus não era mulher, muito menos transexual. E eles pensam que "Cristo com seios" é contra sua concepção moral. Além da birra que eles tem com os gays.
Mas, lamento dizer, não concordo. A bela transexual não quis ferir o cristianismo. Sua teologia é consistente com uma tradição recente do cristianismo conhecida como Teologia da Libertação (TL). Cadê a moçadinha da "TL" que não defende essa lindinha?
Vamos esclarecer uma coisa. O judeu Jesus (mais tarde chamado Jesus Cristo) descende do profetismo hebraico. Esta corrente do Velho Testamento (a Bíblia Hebraica ou "Tanach", como falam os Judeus) se constitui em dura crítica social e política ao poder constituído. Esta crítica se sustenta na ética do Deus israelita, pautada pela busca de justiça contra os idólatras do poder dos reis, dos ricos e dos falsos deuses (os ídolos, daí, a idolatria).
Neste sentido, o significado da "libertação" é se colocar ao lado de todos que sofrem com o peso do poder do mundo a serviço da injustiça. A transexual apenas situou sua condição como sendo vítima do ódio do mundo a ela e aos iguais a ela. Fez teologia performática, e, com isso, deu um banho em muita gente com PhD que discute o sexo dos anjos por aí.
O debate, portanto, deve se dar no âmbito do significado do cristianismo e não apenas no âmbito dos "costumes". Se formos fazer uma discussão teológica, seremos obrigados, creio eu, a aceitar que existe sim na tradição cristã, assim como no profetismo hebraico, uma vocação iconoclasta de ferir o status quo e o coro dos contentes.
Entendo que os evangélicos e cristãos em geral se ofendam. Acho que a reação de orar no Congresso Nacional não cabe num estado laico. Mas gostaria de saber a opinião dos inteligentinhos, que sempre se mostram tão sensíveis aos terroristas islâmicos. Cadê a sensibilidade para com o justo mal-estar dos cristãos diante de uma teologia iconoclasta como a da transexual crucificada?
Esse blá-blá-bá de conservador x progressista cabe mais em discussão de centro acadêmico do que em conversa de gente grande. Essa oposição está bem desgastada e, muitas vezes, não dá conta da complexidade de nosso mundo selvagem.
Eu, pessoalmente, além de entender a proposta teológica dela, e achar que ela cabe num debate teológico consistente, achei a imagem de um erotismo selvagem. Sade ficaria de boca aberta. Nietzsche ficaria com tesão. A beleza da crucificada, associada à agonia do seu rosto, põe em diálogo três dimensões vulcânicas do ser humano: o sexo, o medo e a dor. Não vi só Cristo ali. Vi uma deusa em agonia. Essa linda vale uma missa.
Luiz Felipe Pondé
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