Na terça-feira, Caetano Veloso
postou nas redes sociais um vídeo no qual corrige uma frase escrita pelo
pessoal que trabalha com ele.
O trecho era este: "Homenagem à
Bituca". Bituca é o apelido do grande Milton Nascimento. No vídeo, Caetano
não se limita a dizer que o "a" não deve receber o acento grave (ou
acento indicador de crase). O Mestre dá a explicação completa (e perfeita) da
questão.
Aproveito o "barulho" que
o caso gerou para trocar duas palavras sobre o tema com o caro leitor.
Comecemos pela palavra "crase", que não vem ao mundo como o nome do
acento. De origem grega, "crase" significa "fusão,
mistura". Ao pé da letra, pode-se dizer que Coca-Cola com rum ou leite com
groselha são casos de crase, já que são fusões.
Em gramática, crase vem a ser a
fusão de duas vogais iguais, o que ocorre, por exemplo, na evolução de muitas
palavras do latim para o português. Quer um exemplo? O verbo "ler".
Sim, o verbo "ler". Na evolução do latim para o português, saímos de
"legere" e chegamos a "ler", mas antes passamos por
"leer" (que, por sinal, foi a forma que se fixou no espanhol, outra
língua neolatina). Na evolução de "leer" para "ler", as
duas vogais se fundiram numa só, o que caracteriza a crase.
Como se vê, pode-se dizer que
ocorreu crase na evolução de "legere" para "ler". Esse caso
de crase não é marcado com o acento grave.
Hoje em dia, quando se fala de
crase, pensa-se basicamente na fusão da preposição "a" com um segundo
"a", que quase sempre é artigo definido feminino (atenção:
"quase sempre" não equivale a "sempre"). Quando se escreve
algo como "Você já foi à Bahia?", por exemplo, emprega-se o acento
grave para indicar a crase que de fato ocorre: a preposição "a",
regida pelo verbo "ir" (ir A algum lugar), funde-se com o artigo
feminino "a", exigido por "Bahia" ("Gosto muito dA
Bahia"; "Ele mora nA Bahia").
No caso da construção corrigida por
Caetano ("Homenagem à Bituca"), é óbvio que o acento indicador de
crase é mais do que inadequado, já que no trecho só existe um "a", a
preposição "a", regida pelo substantivo "homenagem"; por
ser substantivo masculino, "Bituca" obviamente rejeita o artigo
feminino.
Os erros no emprego do acento grave
são muitos e frequentes. Quer uma bela lista? Lá vai: "traje à rigor",
"Viajou à convite de...", "carro à álcool/gás",
"Vender à prazo", "à 100 metros", "Vem à
público", "ir à pé", "sal à gosto", "Vale à pena
ir lá", "Parabéns à você", "Atendimento à clientes"
etc., etc., etc.
Alguns gênios sugerem pura e
simplesmente a eliminação do acento grave. Lamento informar que a língua
portuguesa escrita não sobrevive sem esse acento. Uma coisa é "Passei à
tarde na casa dela"; outra é "Passei a tarde na casa dela". Quer
mais? Veja este trecho de "Eu sei que Vou te Amar" : "...sofrer
a eterna desventura de viver a/à espera de viver ao lado teu por toda...".
Como você escreveria o "a" de "a espera"? Com acento? Sem
ele?
As duas possibilidades são corretas,
caro leitor. Com o acento ("...a eterna desventura de viver à espera de
viver ao lado teu..."), o sentido é de "viver assim, desse modo,
desse jeito". Sem o acento ("...a eterna desventura de viver a espera
de viver ao lado teu..."), o sentido é de "viver/vivenciar
algo", "viver/vivenciar essa espera, essa expectativa".
Em tempo: como nada é tão ruim que
não possa piorar, alguém postou no YouTube o depoimento de Caetano com este
título: "Caetano Veloso grava vídeo repreendendo sua própria equipe de
internet por mal uso da crase". "Mal uso"? Não seria "mau
uso"? Elaiá! É isso.
Pasquale Cipro Neto
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