segunda-feira, 29 de junho de 2015

O Sobrado da Rua Nova

                 
A infância é, segundo os psicólogos, o período da vida de maior importância para a construção de um adulto saudável e feliz. Nessa fase da existência ocorrem fatos que nos acompanham pela vida inteira.

                 Era o ano de 1975. Mal completara sete anos de idade. Meus pais precisavam pintar a casa da Rua Coronel José Fernandes na pacata Pombal, Sertão da Paraíba, quando um tio meu não consanguíneo ofereceu-nos o seu sobrado de número 26 na  Rua Nova (assim chamada pelos habitantes da cidade, apesar do seu nome oficial ser Rua Coronel João Carneiro), região central da cidade, localizado próximo de um belo conjunto arquitetônico formado pelas praças do Centenário e Getúlio Vargas (esta, na sua extremidade proximal, representada pela Coluna da Hora), ainda não interligadas como nos dias atuais; a Igreja de Nossa Senhora do Rosário (construção em estilo barroco e datada de 1721); o Pombal Ideal Clube; a Cadeia Velha; o inesquecível Grupo Escolar João da Mata; o Banco do Brasil e as edificações antigas ou reformadas de casas residenciais e prédios comerciais: uma região repleta de harmonia, magia e onde o coração da cidade pulsa e respira ares de eternidade.

                  De cada lado do sobrado existia um outro de igual imponência. Do lado direito, no térreo da edificação funcionava o carinhosamente chamado Bar Morcego ─ homenagem dos clientes ao dormitório existente no andar superior e habitado, como o nome sugere, por enorme quantidade de  morcegos. O bar era um sucesso, por assim dizer, atraindo parte dos jovens pombalenses que acorria ao local principalmente nos fins de semana. Além de bebidas, tinha também sinuca e tira-gostos. Para diversão dos freqüentadores ocasionais e os pinguços assíduos, as conversas giravam em torno do trinômio: mulher, futebol e bebida. Talvez política e outros assuntos mais. Do lado esquerdo, a casa de dois pavimentos do senhor Joaquim Assis abrigava no térreo uma oficina de conserto de motores. O andar de cima, local de residência do proprietário, era tido por alguns como mal-assombrado. Por ele morar sozinho e o aspecto relativamente sombrio da edificação antiga acabaram despertando a já muito aguçada curiosidade dos habitantes que, vez por outra, cogitavam a possibilidade do local ser habitado por alguma alma penada.

                  Apreciava em especial dois momentos do dia: o início da manhã, quando acordava e já me dirigia à varanda do prédio para contemplar a claridade ainda incipiente e ouvir os passarinhos (pardais, andorinhas e até bem-te-vis. Estes em alta na época já que a televisão veiculava uma propaganda, em desenho animado, de margarina do mesmo nome) que comemoravam comigo o despertar do novo dia; e o fim de tarde, vendo o movimento de pessoas em torno da Coluna da Hora, sempre querendo subir lá no topo para enxergar melhor a cidade do alto, e por toda a extensão da Getúlio Vargas que se estendia em direção à Igreja de Nossa Senhora do Bom Sucesso. Lembro-me com nitidez de uma dessas tardes em que os feras pombalenses, muitos residentes em cidades maiores, comemoravam com muita alegria, entusiasmo e descontração  a aprovação no vestibular daquele ano.

                  Estudava no período da manhã. Cursava o segundo ano primário, hoje ensino fundamental menor, no então denominado Grupo Escolar João da Mata. Como gostava de dormir até mais tarde e a escola ficava a poucos metros da minha residência provisória, afeiçoei-me mais ainda àquele sobrado. Gostava da merenda escolar, de olhar o jogo de futebol na “quadra” dentro da escola, de cantar o “Hino Nacional” ─ não me lembro ao certo quantas vezes por semana cantávamos nos corredores da escola, só sei que sabia de cor e salteado, sempre em fila e com a postura de respeito aos símbolos nacionais ─, do jogo de bilas (bolinhas de gude), na frente da escola e debaixo de um enorme pé de castanhola, e das aulas das professoras que se dedicavam com afinco e disciplina para ensinar o melhor que conheciam para todos nós.

                   Logo que cheguei ao sobrado encontrei gibis, já com algumas páginas rasgadas, de Pateta e Michey deixados num canto da sala pelos meus primos que lá tinham estado durante as últimas férias escolares. Ficara encantado há pouco tempo com  a história, num livro do segundo ano primário, lida em sala de aula pela professora Raquel, de um menino chamado Zeca (por não saber ler acabou amassando e jogando no lixo um convite, formulado pelo seu melhor amigo, para um piquenique no fim de semana. Deixou de ir ao passeio e ainda ficou muito chateado com o amiguinho, que não teve culpa no cartório). Como ainda era um leitor iniciante, as revistas em quadrinhos abandonadas e a história contada na sala de aula impulsionaram o meu interesse em leitura levando-me a ser um freqüentador assíduo da única banca de revistas da cidade ─ localizada no calçamento ao pé da Praça do Centenário e em frente ao Banco do Brasil.

                   Conseguia tempo para assistir no televisor da marca Telefunken ─ uma verdadeira “caixa de madeira”, como disse um certo amigo, cheia de válvulas,  de prováveis catorze polegadas, de segunda mão e trazida de Brasília por um tio materno: mas como fazia sucesso! ─ aos seriados  Daniel Boone e Viagem ao Fundo do Mar exibidos nos fins de tarde pela memorável Rede Tupi de Televisão. Sem falar de algumas novelas marcantes como A Barba Azul, Ídolo de Pano e O Machão.

                  Minhas tias, por volta das cinco da tarde, costumavam arrumar a minha irmã, ainda muito pequena, com bastante esmero (vestidinho, calcinha bunda rica, meias, sapatos e um laço no cabelo) e, sob o pretexto de levarem-na  para passear na praça em frente ao sobrado, logo mostravam o seu real interesse: flertar com os rapazes que também transitavam desfrutando o mesmo cenário, os olhares das  moças e o crepúsculo vespertino.

                  Aos sábados, na calçada da Praça do Centenário, a pequena feira de artesanato repleta de utensílios domésticos e brinquedos de criança (como cavalinho, boi, entre outros) feitos de barro e cerâmica e, estacionado ao lado do Cruzeiro, o caminhão da Cobal (Companhia Brasileira de Alimentação) que trazia alimentos de melhor qualidade e inexistentes nas bodegas e  armazéns da cidade, diretamente para a classe social mais abastada. Também se fazia ouvir o anúncio ─ “O palácio das grandes exibições cinematográficas apresenta para hoje...”, veiculado num Opala de cor bege ou no Lord Amplificador com sua “difusora” (projetor de som ou corneta) no Mercado Público ─ do filme do dia a ser exibido no Cine Lux. Foi nesse período que comecei a freqüentar as matinês onde eram projetadas as películas cinematográficas de Tarzan, faroestes de Trinity, Django, Sartana e os longas-metragens melosos de Teixeirinha.

                  A idade da razão, em torno dos sete anos de vida, dava àqueles momentos um maior desfrute do instante vivido. A estadia na residência temporária foi para mim uma experiência de puro deleite, já que mal conhecia outros locais da Terra de Maringá e, sendo assim, poderia ampliar os limites de um horizonte tão estreito e circunscrito à região da nossa moradia.

                  Embora gostasse muito de minha residência, não tive vontade, por  certo tempo, de voltar pra casa “beu”. Provavelmente, foi desse contato ínfimo com o sobrado que nasceu e permaneceu até hoje em mim o gosto por casa de primeiro andar. Desconfio que o meu olhar nunca saiu completamente de dentro daquela edificação de dois pavimentos, na Rua Nova, e do agora longínquo e marcante ano (1975) de minha infância.



                                                                       Adauto F. de Almeida Neto

                                                             [Pombal (PB), 28/08/2007-07/04/2008.]

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