Era o ano de 1975. Mal completara sete
anos de idade. Meus pais precisavam pintar a casa da Rua Coronel José Fernandes
na pacata Pombal, Sertão da Paraíba, quando um tio meu não consanguíneo
ofereceu-nos o seu sobrado de número 26 na
Rua Nova (assim chamada pelos habitantes da cidade, apesar do seu nome
oficial ser Rua Coronel João Carneiro), região central da cidade, localizado próximo
de um belo conjunto arquitetônico formado pelas praças do Centenário e Getúlio
Vargas (esta, na sua extremidade proximal, representada pela Coluna da Hora),
ainda não interligadas como nos dias atuais; a Igreja de Nossa Senhora do
Rosário (construção em estilo barroco e datada de 1721); o Pombal Ideal Clube;
a Cadeia Velha; o inesquecível Grupo Escolar João da Mata; o Banco do Brasil e
as edificações antigas ou reformadas de casas residenciais e prédios
comerciais: uma região repleta de harmonia, magia e onde o coração da cidade
pulsa e respira ares de eternidade.
De cada lado do sobrado
existia um outro de igual imponência. Do lado direito, no térreo da edificação
funcionava o carinhosamente chamado Bar Morcego ─ homenagem dos clientes ao
dormitório existente no andar superior e habitado, como o nome sugere, por enorme
quantidade de morcegos. O bar era um
sucesso, por assim dizer, atraindo parte dos jovens pombalenses que acorria ao
local principalmente nos fins de semana. Além de bebidas, tinha também sinuca e
tira-gostos. Para diversão dos freqüentadores ocasionais e os pinguços
assíduos, as conversas giravam em torno do trinômio: mulher, futebol e bebida.
Talvez política e outros assuntos mais. Do lado esquerdo, a casa de dois
pavimentos do senhor Joaquim Assis abrigava no térreo uma oficina de conserto
de motores. O andar de cima, local de residência do proprietário, era tido por
alguns como mal-assombrado. Por ele morar sozinho e o aspecto relativamente
sombrio da edificação antiga acabaram despertando a já muito aguçada
curiosidade dos habitantes que, vez por outra, cogitavam a possibilidade do local
ser habitado por alguma alma penada.
Apreciava em especial dois
momentos do dia: o início da manhã, quando acordava e já me dirigia à varanda
do prédio para contemplar a claridade ainda incipiente e ouvir os passarinhos (pardais,
andorinhas e até bem-te-vis. Estes em alta na época já que a televisão
veiculava uma propaganda, em desenho animado, de margarina do mesmo nome) que comemoravam
comigo o despertar do novo dia; e o fim de tarde, vendo o movimento de pessoas
em torno da Coluna da Hora, sempre querendo subir lá no topo para enxergar
melhor a cidade do alto, e por toda a extensão da Getúlio Vargas que se estendia
em direção à Igreja de Nossa Senhora do Bom Sucesso. Lembro-me com nitidez de
uma dessas tardes em que os feras pombalenses, muitos residentes em cidades
maiores, comemoravam com muita alegria, entusiasmo e descontração a aprovação no vestibular daquele ano.
Estudava no período da manhã.
Cursava o segundo ano primário, hoje ensino fundamental menor, no então
denominado Grupo Escolar João da Mata. Como gostava de dormir até mais tarde e
a escola ficava a poucos metros da minha residência provisória, afeiçoei-me
mais ainda àquele sobrado. Gostava da merenda escolar, de olhar o jogo de
futebol na “quadra” dentro da escola, de cantar o “Hino Nacional” ─ não me
lembro ao certo quantas vezes por semana cantávamos nos corredores da escola,
só sei que sabia de cor e salteado, sempre em fila e com a postura de respeito
aos símbolos nacionais ─, do jogo de bilas (bolinhas de gude), na frente da
escola e debaixo de um enorme pé de castanhola, e das aulas das professoras que se dedicavam com afinco e
disciplina para ensinar o melhor que conheciam para todos nós.
Logo que cheguei ao sobrado
encontrei gibis, já com algumas páginas rasgadas, de Pateta e Michey deixados num canto da sala pelos meus
primos que lá tinham estado durante as últimas férias escolares. Ficara encantado há pouco tempo com a história, num livro do segundo ano
primário, lida em sala de aula pela professora Raquel, de um menino chamado
Zeca (por não saber ler acabou amassando e jogando no lixo um convite,
formulado pelo seu melhor amigo, para um piquenique no fim de semana. Deixou de
ir ao passeio e ainda ficou muito chateado com o amiguinho, que não teve culpa
no cartório). Como ainda era um leitor iniciante, as revistas em quadrinhos
abandonadas e a história contada na sala de aula impulsionaram o meu interesse
em leitura levando-me a ser um freqüentador assíduo da única banca de revistas da
cidade ─ localizada no calçamento ao pé da Praça do Centenário e em frente ao
Banco do Brasil.
Conseguia tempo para assistir no
televisor da marca Telefunken ─ uma verdadeira “caixa de madeira”, como disse
um certo amigo, cheia de válvulas, de
prováveis catorze polegadas, de segunda mão e trazida de Brasília por um tio
materno: mas como fazia sucesso! ─ aos seriados Daniel Boone
e Viagem ao Fundo do Mar exibidos nos
fins de tarde pela memorável Rede Tupi de Televisão. Sem falar de algumas novelas
marcantes como A Barba Azul, Ídolo de Pano
e O Machão.
Minhas tias, por volta das
cinco da tarde, costumavam arrumar a minha irmã, ainda muito pequena, com
bastante esmero (vestidinho, calcinha bunda rica, meias, sapatos e um laço no cabelo)
e, sob o pretexto de levarem-na para
passear na praça em frente ao sobrado, logo mostravam o seu real interesse:
flertar com os rapazes que também transitavam desfrutando o mesmo cenário, os
olhares das moças e o crepúsculo
vespertino.
Aos sábados, na calçada da Praça do
Centenário, a pequena feira de artesanato repleta de utensílios domésticos e
brinquedos de criança (como cavalinho, boi, entre outros) feitos de barro e
cerâmica e, estacionado ao lado do Cruzeiro, o caminhão da Cobal (Companhia
Brasileira de Alimentação) que trazia alimentos de melhor qualidade e
inexistentes nas bodegas e armazéns da
cidade, diretamente para a classe social mais abastada. Também se fazia ouvir o
anúncio ─ “O palácio das grandes exibições cinematográficas apresenta para
hoje...”, veiculado num Opala de cor bege ou no Lord Amplificador com sua “difusora”
(projetor de som ou corneta) no Mercado Público ─ do filme do dia a ser exibido
no Cine Lux. Foi nesse período que comecei a freqüentar as matinês onde eram
projetadas as películas cinematográficas de Tarzan, faroestes de Trinity,
Django, Sartana e os longas-metragens melosos de Teixeirinha.
A idade da razão, em torno
dos sete anos de vida, dava àqueles momentos um maior desfrute do instante
vivido. A estadia na residência temporária foi para mim uma experiência de puro
deleite, já que mal conhecia outros locais da Terra de Maringá e, sendo assim,
poderia ampliar os limites de um horizonte tão estreito e circunscrito à região
da nossa moradia.
Embora gostasse muito de
minha residência, não tive vontade, por certo tempo, de voltar pra casa “beu”.
Provavelmente, foi desse contato ínfimo com o sobrado que nasceu e permaneceu
até hoje em mim o gosto por casa de primeiro andar. Desconfio que o meu olhar
nunca saiu completamente de dentro daquela edificação de dois pavimentos, na
Rua Nova, e do agora longínquo e marcante ano (1975) de minha infância.
Adauto
F. de Almeida Neto
[Pombal (PB), 28/08/2007-07/04/2008.]
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