quinta-feira, 18 de junho de 2015

Michelle: uma visão

          A poesia como um instrumento da busca de si. A poesia como perseguição do Um. A poesia, enfim, não para fora, não para os outros e para a vaidade, tampouco para a glória estúpida, mas como constituição de um lugar para existir. Como traçado de um desenho interior. É assim que Michelle Lemos Kaplan encara a escrita poética. É assim, numa contorção que leva das palavras ao mundo interior, que ela a enfrenta em "Do largo plano ao estreito ponto" (editora Oito e Meio).

          Ler os poemas de Michelle, contudo, não é ler Michelle. Um núcleo duro resiste ali a poeta escreve e se constitui. Uma casca de palavras a forma e protege. “O que é uno e intacto/ Não perco/ O que há milênios foi/ Não se vai com o tempo”, a poeta nos diz. Nas frestas de seus versos, voltam-me, de repente, os corajosos ideais do Expressionismo. Retratar não a realidade objetiva, mas as emoções provocadas pelos objetos. Olhar para fora não para observar o mundo, mas para fazer, do fora, dentro.

          Em Nova York, deparo-me com uma tela sem título de Mark Rothko, um dos grandes do expressionismo abstrato. Rótulos, eu me pergunto, o que realmente significam? Iluminam, ou cegam? Engraçado porque carregava o livro de Michelle em minha sacola de viagem e, ao acaso, tela e poemas sincronizam. Não digo (seria tolice) que Michelle seja expressionista. Ninguém pode ser o que passou. Além disso, nenhum poeta cabe nos espartilhos de um rótulo. O próprio Rothko, com sua tela de 1949 _ violeta, preto, laranja, amarelo sobre branco e vermelho _ vai muito além do que, ainda hoje, dizemos que ele foi.

          Mas, na minha cabeça, uma imprevista sincronia se estabelece. Também Michelle é devassada (atordoada) pelos objetos. Também em seu caso, eles insistem em perfurá-la, sem que possam chegar a seu miolo. Para Michelle, escrever poesia é proteger esse miolo. Sim, o poeta expõe todo o estardalhaço que o mundo derrama dentro dele. Mas um núcleo não cede, intacto, e só porque há resistência a palavra se faz possível. Ou não haveria chão. Ou não haveria um poeta para escrever e gritar.

“É bom saber de si/ O que ninguém mais sabe/ O que dói, o que vibra, o que arde”, Michelle nos diz.


          A poesia é isso: o que dói, vibra e arde. Aquilo que, como uma manta, desenha o interior do poeta, sem permitir, contudo, que ele se mostre. “Sozinha corro/ De um ponto a outro”, escreve. Entre o largo plano _ o mundo _ e o estreito ponto _ o núcleo _ algo se desenrola. Nesse espaço entre os objetos externos, amplos e gritantes, e um núcleo secreto, a palavra se abriga. Só porque as coisas a atacam, Michelle escreve. Só porque ela se fecha e se defende, escreve também.

          “E só me encontro mesmo quando/ Sozinha caminho.../De um ponto a outro”. Aqui está a chave: a solidão. Nesse ponto secreto em que cada um de nós existe, há uma solidão desoladora. Ali não apenas existimos, mas também resistimos. Existem muitas maneiras de resistir; a de Michelle é escrever. Na solidão, cometemos erros brutais. O engano nos atordoa e dobra. “Mais certo é o errado por onde sigo/ Mais certo é o concreto onde existo”, a poeta afirma sem medo. Volto a observar a tela de Rothko: também nela vislumbro um esconderijo.

          Rothko foi uma exceção. Michelle está apenas tentando. Cada um no seu caminho _ o que torna todas as associações não só inúteis, mas até ridículas. No entanto, ali está a tela, diante de mim. Em minha sacola, o livro, já todo rabiscado. Há uma faísca _ que, provavelmente, nada mais seja que minha maneira torta de ler. Mas o que mais tenho a oferecer a meus leitores, senão o que sou? Volto a Michelle: “No cárcere da minha imagem/ Persisto”. Está tudo dito.

          A poeta se observa no espelho da fotografia, mas nele não pode se reconhecer. “Sim, é doloroso!/ Mas não me reconheço/ Sou fruta sem caroço”. Um núcleo não se deixa fotografar, um núcleo se esquiva. O espelho: “o que reflete é longe, muito longe/ De onde habito”. O poeta está sempre em outro lugar. Alguns ainda têm a ilusão de que é possível devassar o interior. Escreve Michelle: “Quero duas azeitonas sem caroço, por favor./ Para mirá-las por dentro dos buracos”. Ocorre que, uma vez arrancado o caroço (o núcleo), nada mais existe. Nada mais se vê. Por isso, a poesia (a pintura) não passa de uma anunciação. O poema (a tela de Rothko) anuncia algo que não pode mostrar. Sobram os tremores (violeta, preto, laranja) a vibrar diante de nós.

          Medita Michelle: “Deus não desistiu da humanidade.../ E eu não desisti de mim”. Viver é resistir _ e insistir. Versos adiante, ela entrega aos poetas (a todos nós) um caminho: “E não passe para o universo toda a dor que punge/ Se abasteça dela, siga em frente de si, e se alcance”. O poeta (o artista) como um imã que captura a trepidação dos objetos e nela se envolve, para se esconder, mas também para ser. O poeta _ sempre Hilda Hilst, como escapar? _ sobrevive escondido em um vão (a senhora D. sob a escada). Está “entre” _ o fervilhar dos objetos e seu núcleo duro. Constata: “Escrevo/ Onde me perco/ Onde me acho/ Tenho o que quero/ Estou onde caibo”. O poeta se fecha não só para tremer, mas para produzir.

          Reclama de um amor em quem “Além de Ego/ Nada mais se vê (nem com muita fé)”. Já não mais o núcleo _ o caroço _ mas só a aparência. Esse amor tentava explicar tudo. Contrafeita, Michelle pergunta: “O que é o amor senão a falta de explicação?” Através das palavras, o poeta se expressa, mas essa manifestação organizada não diminui sua solidão. “Cada ser é só./ Um só!/ E sempre só de palavras”. De um poeta, as palavras são tudo o que podemos ver (violeta, preto, laranja). Tudo o que podemos ter. Além disso, ninguém vai.

          Todos nós começamos em um pequeno núcleo _ Michelle insiste em dizer. É nele que resistimos: que existimos. A poesia trata de que? “Do tempo que éramos/ Do tamanho de um pequeno caroço/ Ainda sem sentimento e sem som”. Trata, mas não mostra. É como a trave secreta que sustenta o grande cenário. Só os tolos acreditam que, ao ver o cenário, vemos tudo. Esse núcleo duro não se move. A poeta diz: “Simplesmente seja/ Como uma cereja sobre a mesa”.

                (Texto publicado no suplemento "Prosa" de O GLOBO no sábado 06/06/15)


José Castello                                     



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