A
poesia como um instrumento da busca de si. A poesia como perseguição do Um. A
poesia, enfim, não para fora, não para os outros e para a vaidade, tampouco
para a glória estúpida, mas como constituição de um lugar para existir. Como
traçado de um desenho interior. É assim que Michelle Lemos Kaplan encara a
escrita poética. É assim, numa contorção que leva das palavras ao mundo
interior, que ela a enfrenta em "Do largo plano ao estreito ponto"
(editora Oito e Meio).
Ler os poemas de Michelle, contudo, não é ler
Michelle. Um núcleo duro resiste ali a poeta escreve e se constitui. Uma casca
de palavras a forma e protege. “O que é uno e intacto/ Não perco/ O que há
milênios foi/ Não se vai com o tempo”, a poeta nos diz. Nas frestas de seus
versos, voltam-me, de repente, os corajosos ideais do Expressionismo. Retratar
não a realidade objetiva, mas as emoções provocadas pelos objetos. Olhar para
fora não para observar o mundo, mas para fazer, do fora, dentro.
Em Nova York, deparo-me com uma tela sem título de
Mark Rothko, um dos grandes do expressionismo abstrato. Rótulos, eu me
pergunto, o que realmente significam? Iluminam, ou cegam? Engraçado porque
carregava o livro de Michelle em minha sacola de viagem e, ao acaso, tela e
poemas sincronizam. Não digo (seria tolice) que Michelle seja expressionista.
Ninguém pode ser o que passou. Além disso, nenhum poeta cabe nos espartilhos de
um rótulo. O próprio Rothko, com sua tela de 1949 _ violeta, preto, laranja,
amarelo sobre branco e vermelho _ vai muito além do que, ainda hoje, dizemos
que ele foi.
Mas, na minha cabeça, uma imprevista sincronia se
estabelece. Também Michelle é devassada (atordoada) pelos objetos. Também em
seu caso, eles insistem em perfurá-la, sem que possam chegar a seu miolo. Para
Michelle, escrever poesia é proteger esse miolo. Sim, o poeta expõe todo o
estardalhaço que o mundo derrama dentro dele. Mas um núcleo não cede, intacto,
e só porque há resistência a palavra se faz possível. Ou não haveria chão. Ou
não haveria um poeta para escrever e gritar.
“É bom saber de si/ O que ninguém mais sabe/ O que dói, o que vibra, o que
arde”, Michelle nos diz.
A poesia é isso: o que dói, vibra e arde. Aquilo
que, como uma manta, desenha o interior do poeta, sem permitir, contudo, que
ele se mostre. “Sozinha corro/ De um ponto a outro”, escreve. Entre o largo
plano _ o mundo _ e o estreito ponto _ o núcleo _ algo se desenrola. Nesse
espaço entre os objetos externos, amplos e gritantes, e um núcleo secreto, a
palavra se abriga. Só porque as coisas a atacam, Michelle escreve. Só porque
ela se fecha e se defende, escreve também.
“E só me encontro mesmo quando/ Sozinha
caminho.../De um ponto a outro”. Aqui está a chave: a solidão. Nesse ponto
secreto em que cada um de nós existe, há uma solidão desoladora. Ali não apenas
existimos, mas também resistimos. Existem muitas maneiras de resistir; a de
Michelle é escrever. Na solidão, cometemos erros brutais. O engano nos atordoa
e dobra. “Mais certo é o errado por onde sigo/ Mais certo é o concreto onde
existo”, a poeta afirma sem medo. Volto a observar a tela de Rothko: também
nela vislumbro um esconderijo.
Rothko foi uma exceção. Michelle está apenas
tentando. Cada um no seu caminho _ o que torna todas as associações não só
inúteis, mas até ridículas. No entanto, ali está a tela, diante de mim. Em
minha sacola, o livro, já todo rabiscado. Há uma faísca _ que, provavelmente,
nada mais seja que minha maneira torta de ler. Mas o que mais tenho a oferecer
a meus leitores, senão o que sou? Volto a Michelle: “No cárcere da minha
imagem/ Persisto”. Está tudo dito.
A poeta se observa no espelho da fotografia, mas
nele não pode se reconhecer. “Sim, é doloroso!/ Mas não me reconheço/ Sou fruta
sem caroço”. Um núcleo não se deixa fotografar, um núcleo se esquiva. O
espelho: “o que reflete é longe, muito longe/ De onde habito”. O poeta está
sempre em outro lugar. Alguns ainda têm a ilusão de que é possível devassar o
interior. Escreve Michelle: “Quero duas azeitonas sem caroço, por favor./ Para
mirá-las por dentro dos buracos”. Ocorre que, uma vez arrancado o caroço (o
núcleo), nada mais existe. Nada mais se vê. Por isso, a poesia (a pintura) não
passa de uma anunciação. O poema (a tela de Rothko) anuncia algo que não pode
mostrar. Sobram os tremores (violeta, preto, laranja) a vibrar diante de nós.
Medita Michelle: “Deus não desistiu da
humanidade.../ E eu não desisti de mim”. Viver é resistir _ e insistir. Versos
adiante, ela entrega aos poetas (a todos nós) um caminho: “E não passe para o
universo toda a dor que punge/ Se abasteça dela, siga em frente de si, e se
alcance”. O poeta (o artista) como um imã que captura a trepidação dos objetos
e nela se envolve, para se esconder, mas também para ser. O poeta _ sempre
Hilda Hilst, como escapar? _ sobrevive escondido em um vão (a senhora D. sob a
escada). Está “entre” _ o fervilhar dos objetos e seu núcleo duro. Constata:
“Escrevo/ Onde me perco/ Onde me acho/ Tenho o que quero/ Estou onde caibo”. O
poeta se fecha não só para tremer, mas para produzir.
Reclama de um amor em quem “Além de Ego/ Nada mais
se vê (nem com muita fé)”. Já não mais o núcleo _ o caroço _ mas só a
aparência. Esse amor tentava explicar tudo. Contrafeita, Michelle pergunta: “O
que é o amor senão a falta de explicação?” Através das palavras, o poeta se
expressa, mas essa manifestação organizada não diminui sua solidão. “Cada ser é
só./ Um só!/ E sempre só de palavras”. De um poeta, as palavras são tudo o que
podemos ver (violeta, preto, laranja). Tudo o que podemos ter. Além disso,
ninguém vai.
Todos nós começamos em um pequeno núcleo _ Michelle
insiste em dizer. É nele que resistimos: que existimos. A poesia trata de que?
“Do tempo que éramos/ Do tamanho de um pequeno caroço/ Ainda sem sentimento e
sem som”. Trata, mas não mostra. É como a trave secreta que sustenta o grande
cenário. Só os tolos acreditam que, ao ver o cenário, vemos tudo. Esse núcleo
duro não se move. A poeta diz: “Simplesmente seja/ Como uma cereja sobre a
mesa”.
(Texto publicado no suplemento
"Prosa" de O GLOBO no sábado 06/06/15)
José Castello
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