Garcia Márquez
dizia que a coisa mais importante de um romance é a voz que conta a história.
Ela tem que dar desde o início a impressão de que por trás da voz tem uma
pessoa, e por trás da pessoa tem uma história inteira. Alguns narradores já no
comecinho nos tranquilizam, nos fazem ligar o piloto automático: ele vai
entregar tudo de bandeja e só nos resta curtir. Outros no primeiro virar
de página já nos deixaram de orelha em pé, é uma narração cheia de cacos,
contradições, lacunas.
O narrador de O sonâmbulo amador de José Luiz Passos (Objetiva/Alfaguara, 2014) é Jurandir, um cara às vésperas da aposentadoria, trabalhando num cotonifício perto do Recife. É casado, mantém um namoro ata-e-desata com uma colega de trabalho, foi encarregado de defender a empresa no caso de um acidente em que um operário se queimou. Esta é a situação inicial, mas logo Jurandir entra numa despirocação inexplicável que acaba levando-o a uma clínica psiquiátrica.
Jurandir narra as coisas com clareza, com método (é o típico funcionário caprichoso, consciencioso, que se esforça para fazer tudo direito), mas seu discurso é cheio de buracos, de non-sequiturs onde ele pula para coisas que não têm nada a ver, como quem muda um canal na televisão. Ler sua história é como ver uma cena através de um vidro muito transparente mas com manchas opacas espalhadas na superfície.
É a voz monocórdia do Meursault de Camus (O Estrangeiro), alguém brechtiano, distanciado, (descre)vendo coisas sem entendê-las por completo, e nos forçando a amarrar os nós nós mesmos. Contar é ajustar contas, é abrir diante de si mesmo e do mundo o massudo e amassado caderno das nossas dívidas. Em São Bernardo, Graciliano castiga o maucaratismo de Paulo Honório forçando-o a descrever a si mesmo quando resolve narrar suas memórias. Jurandir não é mau caráter mas a verdade é que bastaram duas ou três pequenas catástrofes pra descompensar sua vida.
Nos momentos em que Jurandir conta seus sonhos (um leitmotiv recorrente ao longo do livro inteiro) percebemos que a própria vida dele em vigília está sendo contada com os cortes, as omissões, os “a cena muda” repentinos que acontecem num sonho ou num filme mudo. Ele insiste que seremos capazes de entender seu drama. “Muitos de vocês já passaram por coisa parecida, não tenho dúvida” (p. 36). Narrando esses episódios oníricos, ele se aproxima às vezes da voz distanciada dos narradores de José Agrippino de Paula em Lugar Público (1965), a voz robótica de um sujeito desperto porém sedado, alguém capaz de descrever com indiferença, ao telefone, o incêndio que acontece naquele instante no quarto onde se encontra.
Bráulio Tavares
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