quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

O poder da fantasia

Como se explica que as crianças de hoje, que desde cedo conhecem os segredos do iPad e sabem como nascem, não questionem a vida misteriosa do bom velhinho?
 
Que mistérios tem Papai Noel? Com certeza mais do que Clarice, e o primeiro é o da onipresença. Como, morando na longínqua Lapônia, consegue estar ao mesmo tempo em tantos lugares? Como, numa única noite e carregando um pesado saco, atende a pedidos do mundo inteiro? E, sobretudo, onde arranja tanto dinheiro para distribuir milhões de presentes, se não consta como sócio de ex-gerentes da Petrobras e nem seu nome apareceu nas listas do ex-diretor Paulo Roberto Costa e do doleiro Youssef, pelo menos até agora? Nada de propinas.
 
O segredo talvez esteja no fato de que nas estradas por onde ele circula com seu trenó nunca tenha passado qualquer empreiteira brasileira.
 
Numa época de tanta descrença, como é que o comércio nos propõe acreditar numa figura anacrônica, inverossímil, meio ridícula, rosnando “rô, rô, rô”, com roupa de inverno escandinavo num calor de 50º?
 
Há anos escrevo sobre o Natal prometendo ser a última vez, porque me repito tanto quanto os costumes desta época: a rabanada, a canção “Noite Feliz”, os amigos-ocultos, os presentinhos, os engarrafamentos, o movimento das lojas, sem falar no dinheirinho compulsório para os porteiros, o mendigo de estimação, o guardador de carro, os entregadores de jornais, de remédio, de pizza, garis e carteiros.
 
A exemplo dos Natais anteriores, não foi possível cumprir todos os compromissos de fim de ano, já não digo de compras, que minha mulher é quem as faz, mas de atendimento de convites. Parece que todas as noites de autógrafos, todas as exposições, todos os almoços e jantares de confraternização foram deixados para acontecer neste período. Ter que escolher uns em detrimento de outros é uma das aflições desta época. Mas o pior do Natal é sua submissão ao consumo.
 
Em suma, tudo o que se fala contra o Natal é verdade, mas, apesar dos desvirtuamentos, há nessa festa algo que resiste e que desperta memórias e nostalgias. O que será? Seria o nosso eterno retorno à infância, isto é, à fantasia, ao desejo e ao sonho, por mais antiquado que isso pareça? Como se explica que as crianças de hoje, que desde cedo conhecem os segredos do iPad e sabem como nascem, não questionem a vida misteriosa do bom velhinho?
 
Alice, minha neta, por exemplo, descobriu dentro do mito o imaginário e a realidade, ou seja, a existência de um Papai Noel de mentira e outro de verdade. O primeiro é o que ela vê, pode tocar, fica parado na esquina ou nos shopping-centers. O de verdade é justamente o que ela não vê, mas é o que ela imagina que de madrugada vai pendurar seus presentes na árvore de Natal — é o que alimenta sua fantasia.
 
 
Zuenir Ventura
O Globo
 

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