quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Literatura nas estrelas

                    A literatura se parece com as estrelas. “As estrelas são as estrelas que nós vemos, mas também são algo mais, algo que não vemos, mas que assim mesmo está ali em cima”. Estrelas e literatura guardam, portanto, uma alma dupla. Ler é ler o que não se vê. Assim Juan Kalel, personagem de “Distante”, conto do guatemalteco Eduardo Halfon, explica, à sua maneira, a tese de Ricardo Piglia a respeito do caráter duplo do conto. Para Piglia, um conto sempre conta duas histórias: um relato visível _ como nas estrelas _ esconde um relato secreto.
          O belo conto de Halfon aparece em "O boxeador polaco" (Rocco), coletânea que traz um posfácio de Antônio Xerxenesky. “Distante” é, provavelmente, o mais forte conto do livro. Relata a história de um professor de literatura, ele também Eduardo Halfon, que, em meio à mediocridade dos alunos, se espanta com a mente brilhante de Juan Kalel _ que, além de estudante, é um excelente poeta. Juan é um rapaz magro e deslocado entre os alunos abastados da Universidade Francisco Marroquín. Está no lugar errado: estuda Economia. Assim como seu professor, Halfon, que estuda Engenharia, também. O duplo deslocamento os aproxima.
          É filho de uma família pobre. O pai cuida de hortaliças em Pamanzana, lugarejo nos arredores de Tecpán. A mãe trabalha em uma fábrica de tecidos. Também na família Juan é um estranho. Ainda assim, pensa o professor Halfon, com sua metáfora das estrelas ele “põe em evidência não só a falsidade e a hipocrisia dos demais alunos, como às vezes, para grande tristeza, a do professor e de seu viciado sistema acadêmico”. Também o conto de Eduardo Halfon se desenrola em duas camadas paralelas. Ao descrever as lições do professor sobre escritores como Poe, Maupassant, Tchekhov, Joyce, ele é, de certo modo, uma lição de literatura _ uma afinada e sutil reflexão sobre a arte da ficção. Com Poe, por exemplo, voltamos a entender que “há que aprender a ler além das palavras”. Um escritor genial, explica o professor a seus alunos, é aquele que pode dizer uma coisa enquanto está dizendo outra.
          Em literatura, enfatiza, até para não gostar é preciso saber por que. Não basta dar explicações do tipo: “porque não terminei de ler e então não gostei”. Ou: “porque não se entende nada de nada e o autor só fala asneiras e eu não gosto de quem só fala asneiras”. O abismo que separa seus alunos das ficções o angustia. Depois de ler com eles um conto de Poe, procura lhes mostrar que se trata de “um conto difícil, elíptico, talvez incompreensível, mas no final das contas magistral”. A dificuldade não é um defeito, mas um valor positivo. O duplo caráter da ficção lhe confere uma espécie de invólucro que a leitura deve perfurar. Ler, portanto, é tomar posição diante de um texto.
          Um dia, em um intervalo para o café, Juan Kalel diz a seu mestre que escreve poemas. Entrega-lhe um deles, escrito durante a aula. “Disse que escrevia poemas toda vez que sentia algo muito forte, estivesse onde estivesse, mas que o poema nunca era sobre o que estava sentindo, e sim sobre algo muito diferente”. Outra vez: uma coisa no lugar da outra. Uma emoção forte que, em vez de se revelar, esconde outra emoção forte também. Halfon se impressiona com a sensibilidade do rapaz. Sabe que é preciso atenção, esforço e disciplina para ler um conto. Mas, acima de tudo, é preciso entrega. “Assim se lê um conto: se deixando arrastar pelo rio do autor”. É preciso ter forças para isso. “O ponto é ter a coragem e a confiança para submergir por inteiro”.
          O professor se apega, então, à tese de Platão, segundo a qual a literatura é uma ilusão verdadeira. Para o filósofo, a literatura “é um engano em que quem engana é mais honesto que quem não engana, e quem se deixa enganar é mais inteligente que quem não se deixa enganar”. Não se trata, só, de raciocínio. Não estamos apenas no terreno da razão, mas no da doação. Lendo os poemas de Juan, o professor tem certeza de que está diante de um poeta verdadeiro. Mesmo quando não escreve poemas, o rapaz se sente um poeta. Para Halfon, “um poeta tem que sentir-se assim, nascer assim, ao passo que um narrador pode ir se formando pouco a pouco”. Os dois gostam de conversar, mas passam também longo tempo em silêncio. Nessas horas, o mestre pensa como seria a vida de Juan em família.
          Um dia, o rapaz desaparece. A reitoria recebeu uma carta em que ele comunica sua desistência por problemas pessoais. Insatisfeito, o professor pega seu carro e viaja a Tecpán em busca do aluno desaparecido. Leva consigo um de seus cadernos de poemas, que ele lhe emprestara e que agora deseja devolver. Em busca de Juan, sente-se como Joyce diante da escrita. Para além de todas as referências históricas e todo o trabalho de linguagem, Joyce sabia que a literatura se define por momentos de epifania _ isto é, de iluminação. Uma iluminação é uma revelação súbita. “Uma manifestação espiritual repentina, escreveu o mesmo Joyce”. É o que sente quando lê os poemas do aluno.
          A partir daí, o conto de Eduardo Halfon é a história da procura do rapaz desaparecido. O mestre viaja a Tecpán sozinho, de carro. Pelo caminho, espanta-se com os estranhos nomes dos povoados guatemaltecos: Chicchicastenago, Quetzaltenango, Huehuetenango. São nomes misteriosos, originários das línguas indígenas. Com seus sons incomuns, expressam, mas escondem grandes segredos. O reencontro com o rapaz, enfim, é cheio de segredos também. Não é preciso falar deles para que estejam ali. Os motivos de seu desaparecimento se tornam evidentes antes mesmo de serem revelados. Diante deles, o professor se pergunta, angustiado, se a literatura é mesmo importante. “Olhando o pó e as cabanas, pensei em todos esses contos que, enclausurados em um mundo mais que perfeito, líamos e analisávamos e comentávamos como se em realidade fosse importante lê-los e analisá-los e comentá-los. E já não quis continuar pensando”. O segredo, mais uma vez, prevalece e Juan Kalel, com sua vida imperfeita, passa a encarná-lo. Poetas verdadeiros são assim: imitando as estrelas com sua dupla condição, carregam a poesia dentro de si.
          (Texto publicado no suplemento “Prosa” de O GLOBO no sábado 06-12-14)
 
José Castello

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