A eterna
canção: Que fiz durante o ano, que deixei de fazer, por que perdi tanto tempo
cuidando de aproveitá-lo? Ah, se eu tivesse sido menos apressado! Se parasse
meia hora por dia para não fazer absolutamente nada — quer dizer, para sentir
que não estava fazendo coisas de programa, sem cor nem sabor. Aí, a fantasia
galopava, e eu me reencontraria como gostava de ser; como seria, se eu me
deixasse...
Não culpo os outros. Os outros fazem comigo o que eu consinto
que eles façam, dispersando-me. Aquilo que eu lhes peço para fazerem: não me
deixarem ser eu-um. Nem foi preciso rogar-lhes de boca. Adivinharam. Claro que
eu queria é sair com eles por aí, fugindo de mim como se foge de um chato. Mas
não foi essa a dissipação maior. No trabalho é que me perdi completamente de
mim, tornando-me meu próprio computador. Sem deixar faixa livre para nenhum ato
gratuito. Na programação implacável, só omiti um dado: a vida.
Que
sentimento tive da vida, este ano? Que escavação tentei em suas jazidas? A que
profundidade cheguei? Substituí a noção de profundidade pela de altura. Não quis
saber de minerações. Cravei os olhos no espaço, para acompanhar a primeira fase
de ascensão dos foguetes, ver passar os satélites. Olhei muito em redor e para
cima, nada para dentro ou para baixo. Adquiri uma ciência de ver, ou perdi
outras, que não eram ciências, eram artes de vi-ver?
Bom, é verdade que
as circunstâncias não foram lá muito propícias. Houve de tudo, menos sossego.
Quem pôde dedicar-se a certos trabalhos de geologia moral, como dizia o velho
Assis? Mas as circunstâncias nunca foram favoráveis a nada, nenhum progresso
jamais se fez à sombra de copada mangueira. Havia guerra, e daí? Injustiça, e
daí? Explosão de ressentimentos, recalques, revoltas, e daí? Era precisamente o
instante para você afirmar-se, meu velho: ou revelando a sua palavra ou
pesquisando a sua verdade. Mas você se deixou ir empurrado, machucado, embolado,
bola caindo fora do gramado, ou, na melhor, resvalando na trave.
Eu sei
que você cultivou — mas vamos capar essa alienação da terceira pessoa — que
cultivei ótimos sentimentos, isso não há dúvida. Por mim, era tudo compota de
alegria, licor de anjos, flores de ternura na face da Terra. Exagerei tanto
nesse bem-querer universal que, se fosse obedecido, isto aqui se tornaria
insuportável, de tão doce e melenguento. Corrigi mentalmente a aridez do mundo
sem me dar ao trabalho de mover o dedo mindinho para corrigi-la de fato. O que
me dói mais são meus bons sentimentos; envelhecendo, assemelham-se a calos. Ou
pedras. Tão aéreos, como pesam! Devia ser proibido cultivá-los em estufa.
Ora, estou empretecendo demais as faltas do homem qualquer que presumo
ser (não tão qualquer, afinal: tenho meus privilégios de pequeno-burguês, e quem
disse que abro mão deles?). Devo alegar atenuantes em minha defesa. Não nasci
descompromissado com o mundo tal qual é, em seu aspecto rebarbativo. Deram-me
genes tais e quais, prefixaram-me condições de raça e meio social, prepararam-me
setorialmente para ocupar certa posição na prateleira da vida. Meus ímpetos de
inconformismo são traições a esse ser anterior e modelado, em que me invisto.
Donde concluo que preciso reformar-me, antes de reformar os outros.
Como? Procurei fazê-lo este ano? Que significa um ano para reforma de
tal envergadura? Queria eu chegar a 1970 de estrutura nova, que nem edifício
construído no lugar de casa velha? Às vezes me assalta uma espécie de simpatia
criminosa pelas minhas velhas paredes, meus podres alicerces: é tão bom a gente
ser a mula velha que pasta o capim do hábito, ir trotando em silêncio pela
estrada sabida... A burrada moça que se aventure a outras pastagens, entre
abismos. Pensando bem, não perdi meu ano, pastei sem risco. Mas este "pensando
bem" dura um segundo. Quem pode terminar o ano satisfeito consigo mesmo? Quem
não faltou, não se esqueceu de alguma coisa, não perdeu um gesto de ouro, não
renunciou a um ato de grandeza? Agora estou generalizando uma omissão pessoal,
procuro arrimar-me em possíveis faltas alheias. Olha aí esse malandro diante do
espelho, procurando ver outras caras no lugar da sua! Mas é tempo de parar com a
eterna canção — e celebrar: os que não morremos estamos — ó milagre — vivos.
Depressa, o copo, a dose dupla!
Carlos Drummond de Andrade, in 'O
Poder Ultrajovem'
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