terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Arte como ferimento

Arranco dos ensaios reunidos pela francesa Catherine Lépront em "Entre o silêncio e a obra" (Difel, tradução de Caio Meira) uma série de histórias luminosas. Ler um livro é garimpá-lo _ como se o leitor estivesse em uma mesa de cozinha catando feijões. Em meio às 290 páginas da coletânea, extraio momentos que não sei se a justificam, mas sei que me justificam e me situam enquanto leitor. “Parece-me que foi necessário meio século simplesmente para aprender que armas devo pegar e que armas devo entregar para começar a viver minha vida”. As palavras, do escritor inglês John Cowper Powys, transcritas em um dos últimos ensaios, definem o leitor como um eleitor. A cada página, ele elege o que lhe interessa e, também (silêncio) o que deseja descartar. Ler é fazer escolhas _ ninguém “lê tudo”. Escrever, Catherine nos mostra, é escolher.
          Na abertura do livro, a autora recorda uma antiga lenda narrada pelo holandês Harry Mulisch. Um imperador chinês pede a um homem que desenhe um galo. O artista lhe pede, antes, dez anos de aprendizagem. Hospeda-se no palácio real e passa toda uma década desenhando milhares de galos. Não mostra nenhum deles ao imperador. Passam-se os dez anos. O monarca lhe entrega, então, uma folha de papel e um pincel para que faça o desenho prometido. O artista toma posição. Em um gesto firme, se limita a desenhar um único traço. O imperador se enfurece, rasga o desenho e manda decapitar o pintor.
          Ao rememorar essa história, Catherine Lépront desafia “todos aqueles que, como o imperador chinês, fiam-se somente nos dados imediatamente sensíveis (...) e que só vêem na arte a manifestação ou mesmo o sintoma de um dom natural _ algo que não precisaria nem de aprendizagem , nem de trabalho”. Esses analistas apressados, na verdade, nunca pisaram o ateliê do artista, desprezando assim o quanto a arte “pressupõe de trabalho entre o silêncio em que ela surgiu para o poeta (...) e as últimas correções da obra acabada”. Há todo um esforço _ feito também em silêncio e reclusão _ sem o qual não há obra. Assim testemunham, fartamente, os cadernos de trabalho, os manuscritos, os diários e a correspondência dos grandes criadores.
          Ocorre, na verdade, um movimento de dupla direção, no centro do qual o silêncio, como uma capa protetora, está sempre presente. Em outro ensaio, Catherine nos lembra das palavras do escritor albanês Ismail Kadaré que, no livro "Convite ao ateliê do escritor", nos leva a meditar a respeito do que não podemos ver. Palavras simples que, sem desqualificar o papel do empenho (do ofício) que o imperador chinês não soube considerar, aponta também, e ao contrário, para um fundo aleatório e intraduzível sem o qual trabalho criativo algum se consuma. Escreve Kadaré: “Você pode representar o ateliê de um escritor como bem entender, porém sempre estando certo de que jamais estará muito longe da verdade, tampouco poderá atingi-la. (...) Tudo está lá (no ateliê). Com exceção do essencial. De fato, o laboratório secreto do escritor começa muito mais longe, e permanece até o fim, tão invisível quanto impenetrável”. Um grande silêncio encobre tanto o ofício rigoroso, quanto os movimentos aleatórios que o fertilizam. Tanto na ação, quanto na inação, uma parte permanece fora de cena.
          Esse fato tem uma bela imagem no trecho supostamente arrancado por Frans Kafka dos manuscritos de seu "O processo". Trecho em que se narra o furto de cinco florins, arrancados da caixa do patrão do protagonista Joseph K., o que justificava a ação penal de que ele é vítima. Só depois de extraídas as linhas que descrevem o furto, passando assim a ostentar um grande rombo em seu coração, o romance de Kafka se torna, de fato, um grande romance. O que nos arrasta e prende não é propriamente o processo movido contra K., mas o fato de ele não corresponder a nenhum evento concreto. Em outras palavras: de ele corresponder a um vazio. Mais uma vez: o que nos incomoda e incendeia não é o que vemos, mas o que não vemos. O próprio Kafka, quando pensa em si mesmo, costuma visualizar um abismo Em uma de suas cartas, anota: “Desesperado. Hoje, no semi-sono da tarde. Esta dor acabará estourando a minha cabeça. E, exatamente, nas têmporas. Ao imaginar a cena, o que realmente vi foi um ferimento de bala, só que com o buraco aberto para fora, as bordas afiadas, como quando se explode uma lata”.
          A arte, Catherine nos mostra, é esse ferimento. Que deve ser tratado (trabalhado) intensamente. Mas que, ao mesmo tempo, procede de um furo _ um rasgão que não se deixa ler e cuja origem, por maior que seja nosso esforço, não alcançaremos. O empenho na criação, o apego ao próprio ofício, não impede que o resultado _ como, aliás, em Kafka _ seja, apesar da linguagem objetiva e circunspecta, absolutamente irregular. Lembra a autora de "Petróleo", romance que o cineasta Pier Paolo Pasolini nos legou com sua morte em 1975 e que foi editado vinte anos depois, em Paris. Recordando o prefacio assinado por Aurelio Roncaglia para a edição francesa, Catherine assinala que o romance foi escrito “por estratos”, de modo que toma a forma quase que de um diário, “um misto de páginas finamente acabadas e páginas em estado de esboço”. Ordem e desordem se misturam e se alimentam _ assim como, durante o processo criativo, o esforço racional e a perplexidade se complementam.
          Ler é procurar ganchos _ como alguém que, de pé, busca um apoio em um vagão de metrô em movimento. Nem sempre esses suportes nos bastam, nem sempre eles são suficientes para encadear a torrente de palavras. Escrever _ criar _ é a mesma coisa. Ainda pensando em "Petróleo", escreve Catherine: “Trata-se então de uma obra da qual uma parte minoritária já está criada, mas cujo essencial ainda está em criação, ao mesmo tempo ainda borbulhante, esboçada e lacunar”. O esforço (necessário) para organizar um trabalho nem sempre resulta em organização, muitas vezes conduz a mais desorganização. Como se você pisasse o chão de uma sala em que faltassem muitos tacos. Você se equilibra, luta para permanecer de pé, empenha-se em seu caminho, mas alguma coisa, volta e meia, o atrapalha e derruba.
           (Texto publicado no suplemento "Prosa" de O GLOBO no sábado 29/11/14)
 
José Castello

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