Não se pode ensinar as delícias do amor com aulas de anatomia e fisiologia
dos órgãos sexuais. Se assim fosse o livro “Cântico dos Cânticos”, das Sagradas
Escrituras, nunca teria sido escrito. Não se pode ensinar o prazer da leitura
com aulas sobre as ciências da linguagem. O conhecimento da gramática e das
ciências da interpretação não fazem poetas. Noel Rosa sabia disso e cantou:
“Samba não se aprende no colégio…”
Tomei o livro de poemas de Robert Frost e li um dos seus mais famosos poemas.
“Os bosques são belos, sombrios, fundos. Mas há muitas milhas a andar e muitas
promessas a guardar antes de se poder dormir. Sim, antes de se poder dormir.” Li
vagarosamente. Porque cada poema tem um andamento que lhe é próprio. Como na
música. Se o primeiro movimento da “Sonata ao Luar”, de Beethoven, que todos já
ouviram e desejam ouvir de novo, “adagio sostenuto”, fosse tocado como “presto”,
rapidamente – exatamente as mesmas notas! – a sua beleza se iria.
Ficaria ridículo. Porque o “presto” é incompatível com aquilo que o primeiro
movimento está dizendo. O tempo de uma peça musical pertence à sua própria
essência. Eu até já sugeri que os escritores imitassem os compositores que, como
medida protetora da beleza, colocam, ao início de uma peça, uma informação sobre
o “tempo” em que ela deve ser tocada: grave, andante, vivace, mestoso, allegro.
Cada texto literário tem também o seu próprio tempo. Há textos que devem ser
lidos ao ritmo de uma criança pulando corda e dando risadas. Como o poema da
Cecília “Leilão de Jardim”: “ Quem me compra um jardim com flores? Borboletas
de muitas cores, lavadeiras e passarinhos, ovos verdes e azuis nos ninhos?” O
poema inteiro é marcado por essa alegria infantil, saltitante. Quando se passa
para a sua “Elegia”, escrita para a sua avó morta, o clima é outro. Há uma
tristeza profunda. Há de se ler lentamente, com sofrimento: “Minha primeira
lágrima caiu dentro dos teus olhos. Tive medo de a enxugar: para não saberes que
tinha caído.”
Li vagarosamente. O poema pede para ser lido vagarosamente. Terminada a
leitura não me atrevi a dizer nada. É preciso que haja silêncio. A música só
existe sobre um fundo de silêncio. É no silêncio que a beleza coloca os seus
ovos. É no silêncio que as palavras são chocadas. É no silêncio que se ouve
aquela outra voz mencionada por Fernando Pessoa, voz habitante dos interstícios
das palavras do poeta. (Por isso fico profundamente irritado quando alguém fala
enquanto a música é tocada. É como se estivesse a ver uma partida de futebol
enquanto se faz amor…). Passados alguns momentos de silêncio (como o silêncio
que existe entre os dois movimentos de uma sonata) pus-me a ler o mesmo poema de
novo, com a mesma música. E aí, então, no silêncio que se seguiu à segunda
leitura, ouvi um soluço no fundo da sala. Uma jovem chorava. Jamais me passaria
pela cabeça que ela estivesse chorando por causa do poema. Embora ele me comova
muito, minha comoção nunca chegou ao choro. Pensei que se tratasse de um
sofrimento de sua vida privada. Diante de um soluço tudo pára. Agora o que
importava não era o poema, era aquele soluço. “Que aconteceu?”, perguntei. “Não
sei, professor. Esse poema me deu uma tristeza imensa”. Eu quis entender: “Mas
o que, no poema, lhe deu tristeza?” “Não sei professor. Só sei que esse poema me
faz chorar…”
Lembrei-me de Fernando Pessoa: “… e a melodia que não havia, se agora a
lembro, faz-me chorar.” Grande mistério esse: é o que não há que provoca o
choro. Como disse Valéry, vivemos pelo poder das coisas que não existem. Por
isso os deuses são tão poderosos… (Essa jovem, que assim me marcou de forma
inesquecível, pouco tempo depois morreu num desastre de carro. Espero que ela,
no outro mundo, tenha visitado os bosques “belos, sombrios e fundos” de Robert
Frost).
Houve beleza e mistério porque eu não me meti a interpretar o poema. E, no
entanto, a interpretação de textos parece ser uma das obsessões dos programas
escolares. Se o meu propósito fosse interpretar o poema de Frost, para
aproveitar o tempo eu o teria lido um pouco mais depressa, teria desprezado o
silêncio e não teria repetido a leitura. Essas coisas nada tem a ver com a
interpretação. A interpretação acontece a partir daquilo que está escrito, se
devagar ou depressa não importa. Minha primeira pergunta teria sido: “O que é
que Robert Frost queria dizer?” Toda interpretação começa com essa pergunta. É a
pergunta que surge numa zona de obscuridade: há sombras no texto. O intérprete é
um ser luminoso. Não suporta sombras. Ele trás então suas lanternas, suas idéias
claras e distintas, e trata de iluminar os bosques sombrios… Não percebe que ao
tentar iluminar os bosques, dele fogem as criaturas encantadas que habitam as
sombras. Esquecem-se do que disse Bachelard: “Parece que existe em nós cantos
sombrios que toleram apenas uma luz bruxoleante…” O inconsciente é um bosque
sombrio… ( Mês que vem continuamos a conversa…)
Rubem Alves
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