domingo, 21 de dezembro de 2014

Heróis em casa

“Todo menino, Sr. Corregedor, cria para si mesmo seus Príncipes e Princesas, deuses e demônios, heróis e Cavaleiros, Anjos puros e terríveis, numes tutelares que se tornam os modelos de suas vidas. No meu caso, foram os mortos da minha família e as terríveis Divindades tapuio-sertanejas; e quantas pessoas não já morreram, no mundo, de uma dura morte, só por causa de fidelidades e divindades semelhantes a essas minhas? Eu tive a sorte – ou a desgraça, ou a sina, não sei! – de ter os meus heróis em casa, como brasas ardentes colocadas desde muito antes do meu nascimento sobre a minha cabeça, asas de fogo e de navalha a me chamarem para o alto”.

Quem diz isso é Pedro Dinis Quaderna, o narrador do Romance da Pedra do Reino de Ariano Suassuna. Quaderna é de uma estirpe particular de anti-heróis. Ele vem de uma família de titãs monstruosos, e isso é o que importa, visto que ele mesmo aos próprios olhos não vale nada nem é ninguém. “Tive a sorte de ter meus heróis em casa” é um impulso de grandeza mais do que compreensível da parte de alguém que na fazenda onde foi criado era visto como um mero agregado, um primo pobre, o beneficiário de uma boa ação.

Quaderna, no entanto, não descende de heróis. O maior exemplo de grandeza em sua família é seu bisavô, conhecido como D. João, o Execrável, que lavou os lajedos na serra de Belmonte com o sangue quente de mulheres e crianças, sonhando com isso desencantar um castelo e promover o retorno de Dom Sebastião. Os antepassados de Quaderna são, na sua bestialidade, uma encenação melodramática, uma caricatura de um tempo em que era preciso derramar sangue humano para garantir a aliança com o divino.

Há um movimento constante de sublimação dentro da Pedra, em que Quaderna esvazia o que é guerra em encenação (as cavalhadas), esvazia a ambição política na (reconhecidamente mais impecuniária) ambição das letras, esvazia um duelo mortal numa patuscada de penicos. Enquanto sonha com um trono qualquer, Dinis Quaderna pensa consigo mesmo que a melhor coisa que existe é mesmo estar vivo, haja vista sua descrição quando lhe perguntam o que é o Mundo, segundo a filosofia do Penetral: “Estou pensando numa estrada, numas pedras, num bode, num pé de catingueira, numa Onça, numa mulher nua, num pé de coroa-de-frade, no vento, na poeira, no cheiro de cumaru e num jumento trepando numa jumenta!” (Se alguém tiver uma definição melhor do Mundo, favor publicar na Internet.) A recusa da violência, numa linhagem ou dinastia que convive com ela na boa, a recusa de batizar o mundo com sangue, é um traço mais dos Vilar do que dos Suassuna, e acaba sendo o traço dos Quaderna.
 
Bráulio Tavares

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