O poder dá a quem o tem a sensação de que pode realizar tudo, inclusive fantasias infantis
Quem, entre nós, nunca sonhou em ter um suprimento inesgotável de sorvete que atire o primeiro Häagen-Dazs.
Era um desejo infantil, um desejo que se dissipava na adolescência,
quando passávamos a sonhar com outras coisas. Mas o poder dá a quem o
tem a sensação de que pode realizar tudo, inclusive fantasias infantis.
O presidente americano George Bush — o lamentável pai, não o lamentável
filho — disse certa vez, meio brincando, que nunca gostara de brócolis e
que agora que era presidente não precisava comer brócolis.
Quem, entre nós, nunca sonhou em não ser forçado a comer brócolis, ou
comer espinafre, ou tomar banho, ou ir ao dentista, ou arrumar o quarto?
Eu sei que não foi o Temer que pediu 500 potes de Häagen-Dazs para o
avião presidencial, o que, além de um exagero, seria uma desfeita com a
Kibon. Mas os 500 potes de Häagen-Dazs servem como metáfora, tanto
quanto as joias da mulher do Cabral e outros acintes, para uma espécie
de delírio que vem com o poder, e que não deixa de ser uma forma de
infantilização.
Vi, certa vez, um documentário sobre o Frank Sinatra em que ele foi
filmado na sua casa, que incluía um enorme salão todo ocupado por uma
ferrovia em miniatura. No salão havia uma placa na parede com o frase:
“Quem morre com mais brinquedos, ganha”. É isso: quem acumula mais
desejos satisfeitos vence, ou é uma criança até o fim.
A quase compra de potes de Häagen-Dazs simboliza um grau de
insensibilidade, nesta hora de aperto geral, que também tem algo de
infantil, no sentido que crianças não têm senso de medida.
Quem decidiu pela compra é uma criança inocente, não importa sua idade.
Ou, se cabe outra metáfora, 500 potes de Häagen-Dazs simbolizariam um
descaso pela opinião alheia que beira a malcriação. Outra criancice.
Fiquei pensando nos meus próprios sonhos infantis, realizados e não
realizados. Não me tornei aviador nem fui morar numa árvore como o
Tarzan, e meu consumo de sorvete foi limitado pelas sucessivas ameaças
maternas de ter uma indigestão mortal. Mas também me lembro do prazer de
ter nas mãos a primeira história em quadrinhos — a cores! E o do
primeiro chute numa bola de futebol novinha, no tempo que as bolas
tinham a cor do couro.
Ou da vez em que... Mas isto é outra coluna.
Luis Fernando Veríssimo
Do Blogo do Noblat
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