A leitura de um livro de poemas, um belo livro de poemas — Corpo de festim, de Alexandre
Guarnieri, Confraria do Vento — me leva a refletir sobre uma conexão
impensável: o vínculo entre literatura e corpo. Costumamos achar que os dois
jamais se misturam. Contudo, alguns sinais perfuram essa opacidade mútua. Desde
menino, desde minhas primeiras leituras ainda de calças curtas, sofri na carne
— a palavra é exatamente essa — os efeitos dos livros que li. A leitura do Robinson Crusoe, de Defoe, aos
oito anos de idade, leitura e releitura obsessivas, me deixou paralisado em uma
rede, na varanda do sítio de meus pais, em Teresópolis. “O que você tanto faz
aí deitado?”, meu pai reclamava. “Larga esse livro e vai aproveitar o sol.” Mas
algo me prendia: eu não conseguia parar de ler.
Um dia, impressionado, ele me levou ao médico da família, que
tinha um consultório na Rua Graça Aranha, no centro do Rio. Depois de me
examinar com cuidado, o doutor diagnosticou: “Esse menino não tem nada, só precisa
de ar puro”. A leitura, porém, já tinha se tornado um veneno, estava infiltrada
em meu sangue. Pouco depois, enquanto eu lia A peste,
de Camus, cultivava a sensação de que todo o meu corpo era invadido por uma
epidemia invisível que, sim, podia até me destruir. Meses mais tarde, ou talvez
um ou dois anos, e ainda com mais espanto, liA metamorfose,
de Kafka — e o livro me convenceu de que, sim, imitando o que aconteceu com
Gregor Samsa, as dores mentais podem se materializar na anatomia, agitá-la e alterá-la.
O sintoma mais grave foi produzido, aos 18 para 19 anos, com a
leitura de A paixão
segundo GH, de Clarice. Simplesmente caí doente. Uma febre
enigmática, sem nenhum outro sintoma, só fazia subir e subir. Não conseguia
sair da cama. Até que certo doutor Wangler, médico de minha avó Iracema, foi
chamado para me examinar. Examinou-me com lentidão e em absoluto silêncio. No
fim, virou-se para minha avó e declarou: “Não é nada não. Esse rapaz sofre só
de uma paixonite”. Em um exercício exemplar de crítica literária, o doutor
Wangler conseguiu ler GH em meu corpo. O romance estava
instalado dentro de mim e, radical e belo, me corroia.
Dependendo de como lemos o corpo, ele se parece com um livro.
Através de cada órgão, cada músculo, cada fluido, podemos alcançar não a alma,
ou o espírito, ou qualquer outra transcendência, mas alguma coisa que, sendo
corpo ainda, o ultrapassa e legitima.
Essa experiência me convenceu de vez de que, apesar de
impenetráveis, literatura e corpo mantêm um elo secreto muito mais potente do
que em geral consideramos. De que ler é sim, concretamente, perigoso. Agora é a
vez de Alexandre Guarnieri tentar ler poesia na anatomia. Tenta e consegue. Seu
livro é surpreendente. O baço, os rins, a lágrima, o sêmen, a urina, a pele, o
crânio tornam-se matéria nobre de poesia. Sim, há poesia no corpo — tudo
depende do modo como nós o lemos.
É espantoso. Dependendo de como lemos o corpo, ele se parece com
um livro. Através de cada órgão, cada músculo, cada fluido, podemos alcançar
não a alma, ou o espírito, ou qualquer outra transcendência, mas alguma coisa
que, sendo corpo ainda, o ultrapassa e legitima. Talvez um sentido — que se
expressa em coisas banais como um tremor, uma respiração, um desmaio. Talvez
uma simples direção. Escreve Alexandre: “a carne, que cada corte desonra,/
cintila nesse mal que tarda a sarar”. Mais à frente, escrevendo sobre o sangue,
o poeta nos diz: “no livro corporal (sob o martírio/ de ser escrito) o sal que
cada talho; encontra, arde, demora a curar”. Escrita e corpo se misturam, se
confundem, se alimentam. Aqui cabe não esquecer do mais evidente: que é com o
corpo — especialmente com as mãos trêmulas e a mente agitada — que todos
escrevemos.
Há, no corpo, uma alternância entre o seco e o molhado. Entre o
morto e o vivo. É nela que a vida palpita e que uma biografia, enfim, toma
corpo, podendo ou não, depois, ser efetivamente escrita. A poesia de Alexandre
é seca, entrecortada, minuciosa. Ele escreve com o mesmo fervor dos
anatomistas. Mas não se trata apenas de descrever o corpo. Mais que isso:
escrevendo-o, o poeta lhe sopra uma segunda vida. Ainda e sempre será apenas do
corpo que se trata, mas não poderemos observá-lo mais com a mesma apatia.
Movimentos que não controlamos movem esse corpo e o dirigem. No poema dedicado
ao pulmão esquerdo, ele escreve: “movimentam-se, involuntários, todos os seus
sistemas”. O corpo não sabe o que faz e, no entanto, continua a fazer. Neste
“como fazer” reside sua poesia. Nessa agitação involuntária — semelhante aos
movimentos do coração, ou dos intestinos — uma vida lateja.
Ainda agora soube que um grande amigo, que é também um jovem
escritor, está com um câncer. Nele, a quimioterapia tenta conter aquilo que o
corpo, autônomo e indiferente, insiste em produzir. Essa autonomia do corpo se
parece, em muito, com a independência da escrita, que está sempre a nos
escapulir. Não é por outro motivo que, na leitura literária, esbarramos,
tropeçamos e trememos. Uma autonomia feita de vazios. Alexandre assim a
descreve: “cada poro/ um escoadouro/ pelo qual/ cada glândula/ sudorípara/ res
pira”.
Tratando, mais à frente, do mecanismo dos fluidos, ele diz: “da
língua aos intestinos/ há um caminho/ como o rio nilo/ lindo o alto/ ao baixo
Egito”. Microorganismos quebram as moléculas, produzindo furos. Reentrâncias,
margens, mucosas em que o corpo deságua. No corpo há movimento e, portanto, há
narrativa. Em um corpo vivo, algo se produz e nisso, se soubermos ver, há
também alguma poesia. Alexandre sabe e nela remexe com a pose de um
especialista.
Não podemos negar ainda, o poeta nos adverte, “que haja, em
potência, o erro/ (é mais fácil zelar pela cabeça)/ ou algum tropeço preso a
cada membro”. Também no corpo a narrativa (poética) é instável e repleta de
rupturas. Também nele algo, sem sucesso, tenta se manter em equilíbrio. Talvez
no corpo o equilíbrio seja exatamente essa ausência de equilíbrio. A norma seja
a quebra da norma. Minuciosa e “científica”, a poesia de Alexandre nos dá
acesso a um cenário atravancado de surpresas. A uma máquina que só funciona
porque é estranha e escorregadia.
A poesia não dá conta do corpo. Também o corpo não serve como
espelho para o mundo — como pretendem os biologistas. Uma áspera barreira
separa corpo e poesia. É sobre esse tenso fio que Alexandre Guarnieri escreve.
É equilibrando-se sobre ele que (sabendo que nunca sairemos ilesos) todos nós
escrevemos e lemos.
JOSÉ CASTELLO
É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar,
entre outros livros. Vive em Curitiba (PR).
Jornal Rascunho
(Disponível em: http://rascunho.com.br/poesia-e-corpo.
Acesso em: 16 janeiro 2016.)
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