Neste início de ano, o noticiário nos impõe uma pergunta pouco confortável: quem somos?
Ninguém
de nós responderia “eu sou um dos revoltosos do presídio Anísio Jobim”,
assim como nenhum de nós contou as cabeças decepadas dos rivais,
filmando a cena para exibi-la – ou exibir-se- nas redes sociais. Nós não
somos os bárbaros.
Bárbaros são sempre os outros. Mas um bárbaro
ou uma matilha de bárbaros ou hostes de bárbaros não aparecem por acaso,
não têm geração espontânea. Sobretudo quando inseridos em uma sociedade
que se pretende civilizada, os bárbaros são um produto.
Em geral,
produto de uma barbárie menos aparente. Fabrica-se um bárbaro colocando
três para viver onde só um caberia. Ajuda-se um bárbaro a tomar plena
posse de sua barbárie colocando-o num ambiente propício. Bárbaros
exercitam melhor sua barbárie quando armados e com acesso a celulares.
Pode-se enxertar barbárie numa criança privando-a de proteção, educação e
de um ambiente adequado ao seu crescimento. Bárbaros proliferam melhor
sem esgotos do que postos em uma universidade. Bárbaros se alimentam e
se multiplicam graças a exemplos de barbárie bem sucedida.
Quem
somos? Nenhum de nós é aquele que viu os dois primos matando a socos o
ambulante indefeso, cujo único crime havia sido defender uma travesti.
Nenhum de nós é o que passou mais rápido e nada fez para impedir o
assassinato. Muito menos somos aquele que, sorrateiro, aproximou-se do
morto para roubar-lhe o celular que já não lhe serviria.
Nenhum de
nós é um prefeito sumido do posto depois de ter sumido com outras
coisas. Nenhum de nós, ao retirar-se do cargo público que exercia levou o
computador ou a mesa. Nenhum de nós foi buscar o filho em um
condomínio, na manhã de domingo, depois de uma festa de réveillon, a
bordo de um helicóptero do estado. Nós não somos aquele que percorreu
cerca de 300 quilômetros de carro, procurando o lugar melhor para
desovar ou queimar o corpo do homem que havia assassinado e que levava
na mala. Nós não somos sequer aqueles que escreveram “Fora Lésbica!”,
sem esquecer o ponto de exclamação, em um quadro imantado destinado a
atividades infantis.
O problema é que a pergunta não se pretende
individual. Não se trata de saber quem sou eu ou quem é você. Trata-se
de saber quem somos nós, os brasileiros, como sociedade. De como nos
vemos e de como somos vistos.
O morticínio do presídio foi notícia no mundo inteiro. O olhar que se pousa sobre nós fez-se mais denso.
E
aqui, o horror que sentimos diante do massacre de Manaus é o mesmo que
sentimos diante dos repetidos massacres do EI? As cabeças cortadas, de
um lado e do outro, têm para nós o mesmo peso? O fato de uns serem
reféns inocentes e os outro serem bandidos faz diferença?
Ou
estamos mais preocupados com os 80 e tantos que fugiram pelo túnel
ameaçando a tranquilidade fora do presídio, do que com os que mataram ou
foram mortos?
Na foto publicada na primeira página de O Globo de
terça-feira, mostrando o lado de fora do Anísio Jobim há, entre os
familiares, duas mulheres encapuzadas, só olhos de fora. Pode ser temor
de um eventual gás lacrimogêneo, ou medo de ser reconhecida por
elementos da facção rival à do seu parente. O enfrentamento não se
limita ao recinto do presídio.
Nem se limita à luta entre uma
facção de traficantes e outra. O enfrentamento mais amplo e mais fundo
se situa, já faz tempo, entre a sociedade que somos e a que queremos
ser.
Marina Colasanti
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