Naqueles idos de 1970, não sei porque, eu me pus a assoviar
“Summertime”, a canção que George Gershwin legou à eternidade. Todo
mundo já a ouviu, mesmo que disso,
porventura, não o saiba. Está, vez ou outra, no rádio, embora se tenham
passado 81 anos desde a composição para a ópera “Porgy and Bess”.
Tornou-se um clássico do jazz e teve milhares de gravações, uma delas na
voz espremida e emblemática de Janis Joplin.
Era madrugada numa Pilar de portas fechadas e quase sem uma viva alma
nas ruas, exceto a deste que vos fala e de meia dúzia de companheiros
egressos do forró de Zé Laurindo, no Alto da Serventia, onde,
evidentemente, não tocavam Gershwin.
Os amigos seguiram para suas casas enquanto eu preferi deitar no
banco de um dos canteiros situados no meio da rua principal. Assim o
fiz, no ponto quase defronte à extinta padaria do velho Juca, meu pai.
Talvez, pelo desejo inconsciente de ter de volta as pessoas e tudo
aquilo mais que o tempo me roubara. Mas, certamente, por sentir que não
poderia estar, àquela hora, em lugar mais seguro.
Em 1970, eu morava em João Pessoa, na companhia de pai e mãe ainda
vivos e sadios. Mas estava em Pilar, aos finais de semana, para dar
aulas a cinco turmas de ginasianos, quase um voluntariado, se a
expressão disser respeito ao salário do Colégio da CNEC. Salário que, na
verdade, ficava, ali mesmo, ora no Bar de Manoel de Laura, ora na
Sinuca de Jaime, pontos habituais de reunião dos amigos antes dos nossos
encontros com as namoradas e, depois disso, das idas clandestinas à
Serventia, ou à Maloca.
Advindo dessas noitadas, aprendi a demorar, um pouco mais, em banco
de praça, antes de buscar a cama, na casa do primo Zezinho, que me
hospedava. A ideia era curtir um tanto da bebida e do tira-gosto
consumidos nos bailes com que a juventude, os amigos e as circunstâncias
então me presenteavam.
Eram pausas ditadas pela cautela, desde que despenquei sobre o sofá
de seu Raimundo, pai do meu primo, ao pular a janela estreita e
disposta, sem trancas, aos retardatários. Caí e acordei o dono da casa
que me tinha como filho e de quem recebi o pito: “Duas coisas derrubam
um homem: bebedeira e rapariga”, alertou-me.
Depois disso, sempre me seria aconselhável deitar durante algum tempo
num daqueles bancos antes de tentar o ingresso na casa amiga em
operação atlética um tanto arriscada até para os abstêmios. E tome
Gershwin nas madrugadas.
Isso tudo, agora, me vem à mente ante a notícia de mais uma explosão
de agência bancária na outrora pacata, serena e tranquila Pilar. E
pensar que o costume de portas e janelas recostadas era coisa ali comum,
nos meus verdes anos. Lembro que Dona Vininha, minha mãe, não se
dispunha a sair da cama para atender o marido. Noite alta, ele que
empurrasse a porta e entrasse sozinho. Tem mais: os dois litros de leite
depositados no umbral da casa, antes do raiar do sol, ali permaneciam
até o recolhimento, horas depois, por alguém da família.
Tempo desgraçado, este de agora, no qual bandos armados agridem e
desrespeitam até as pequenas cidades das quais subtraem, além do
sossego, hábitos noturnos, alguns centenários como o das cadeiras nas
calçadas para a confraternização entre os vizinhos. Tempo infame este
que hoje nos impede, até mesmo, o assovio nas madrugadas.
Frutuoso Chaves
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