segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Sopros na noite

Naqueles idos de 1970, não sei porque, eu me pus a assoviar “Summertime”, a canção que George Gershwin legou à eternidade. Todo mundo já a ouviu, mesmo que disso, porventura, não o saiba. Está, vez ou outra, no rádio, embora se tenham passado 81 anos desde a composição para a ópera “Porgy and Bess”. Tornou-se um clássico do jazz e teve milhares de gravações, uma delas na voz espremida e emblemática de Janis Joplin.

Era madrugada numa Pilar de portas fechadas e quase sem uma viva alma nas ruas, exceto a deste que vos fala e de meia dúzia de companheiros egressos do forró de Zé Laurindo, no Alto da Serventia, onde, evidentemente, não tocavam Gershwin.

Os amigos seguiram para suas casas enquanto eu preferi deitar no banco de um dos canteiros situados no meio da rua principal. Assim o fiz, no ponto quase defronte à extinta padaria do velho Juca, meu pai. Talvez, pelo desejo inconsciente de ter de volta as pessoas e tudo aquilo mais que o tempo me roubara. Mas, certamente, por sentir que não poderia estar, àquela hora, em lugar mais seguro.

Em 1970, eu morava em João Pessoa, na companhia de pai e mãe ainda vivos e sadios. Mas estava em Pilar, aos finais de semana, para dar aulas a cinco turmas de ginasianos, quase um voluntariado, se a expressão disser respeito ao salário do Colégio da CNEC. Salário que, na verdade, ficava, ali mesmo, ora no Bar de Manoel de Laura, ora na Sinuca de Jaime, pontos habituais de reunião dos amigos antes dos nossos encontros com as namoradas e, depois disso, das idas clandestinas à Serventia, ou à Maloca.

Advindo dessas noitadas, aprendi a demorar, um pouco mais, em banco de praça, antes de buscar a cama, na casa do primo Zezinho, que me hospedava. A ideia era curtir um tanto da bebida e do tira-gosto consumidos nos bailes com que a juventude, os amigos e as circunstâncias então me presenteavam.

Eram pausas ditadas pela cautela, desde que despenquei sobre o sofá de seu Raimundo, pai do meu primo, ao pular a janela estreita e disposta, sem trancas, aos retardatários. Caí e acordei o dono da casa que me tinha como filho e de quem recebi o pito: “Duas coisas derrubam um homem: bebedeira e rapariga”, alertou-me.

Depois disso, sempre me seria aconselhável deitar durante algum tempo num daqueles bancos antes de tentar o ingresso na casa amiga em operação atlética um tanto arriscada até para os abstêmios. E tome Gershwin nas madrugadas.

Isso tudo, agora, me vem à mente ante a notícia de mais uma explosão de agência bancária na outrora pacata, serena e tranquila Pilar. E pensar que o costume de portas e janelas recostadas era coisa ali comum, nos meus verdes anos. Lembro que Dona Vininha, minha mãe, não se dispunha a sair da cama para atender o marido. Noite alta, ele que empurrasse a porta e entrasse sozinho. Tem mais: os dois litros de leite depositados no umbral da casa, antes do raiar do sol, ali permaneciam até o recolhimento, horas depois, por alguém da família.

Tempo desgraçado, este de agora, no qual bandos armados agridem e desrespeitam até as pequenas cidades das quais subtraem, além do sossego, hábitos noturnos, alguns centenários como o das cadeiras nas calçadas para a confraternização entre os vizinhos. Tempo infame este que hoje nos impede, até mesmo, o assovio nas madrugadas.

Frutuoso Chaves 

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