“Uma vez, numa terra
remota, havia uma donzela. Ela morava perto de uma grande floresta. E o pai dela disse: ‘Não entre no bosque’.
Mas ela era uma menina má e não obedeceu. Ela queria saber o que tinha lá
dentro. Ela achou que ia poder entrar lá somente um pouquinho. A floresta é
muito escura, e cheia de barulhos que dão medo. A donzela falou assim consigo
mesma: ‘Eu não gosto disto aqui’, e ela tentou voltar, mas ela não conseguia
mais avistar a trilha por onde viera, e estava ficando de noite, e de repente
alguma coisa pulou em cima dela! Era um urso. E o urso disse: ‘O que você está
fazendo na minha floresta?’ ‘Oh, senhor Urso, por favor não me coma!’, disse a
donzela. ‘Eu me perdi e não estou conseguindo voltar para minha casa.’ Agora: o
urso era um urso bom, mesmo tendo cara de cruel, e ele disse: ‘Eu posso lhe
ajudar a sair de dentro da floresta’, e a donzela disse, ‘Mas como? Está tão
escuro’, ‘Bem, então vamos perguntar à coruja’, disse o urso, “ela pode ver no
escuro’. Ela continuou a falar, inventando à medida que avançava, sentindo um
estranho conforto naquilo.
O parágrafo acima é uma síntese de uma cena aparentemente
banal, uma moça de vinte e poucos anos, solteira, botando para dormir um menina
de cinco, à qual se afeiçoou. A autora é Connie Willis, uma escritora muito
popular e premiada nos EUA, autora de contos ora engraçados, ora sentimentais,
mas sempre com leveza. Este romance, O
Livro do Juízo Final (Doomsday Book, 1992) deverá sair pela Suma de Letras,
com tradução minha.
Willis tem mais formação literária do que científica. Não
quer dizer que ela não entenda de ciências, mas quando ela inventa aqui no seu romance uma
máquina do tempo, ela, como H. G. Wells, fornece apenas informações genéricas
sobre como a máquina é posta a funcionar. Não se dá o trabalho de explicar como
se obtém um resultado tão espantoso, nem parece perder muito sono com isto. (Em
termos das redes sociais de hoje, Willis é uma escritora de Humanas.)
Seu interesse é o paralelismo entre os tempos, as rimas
de pequenos acontecimentos ou dramas refletindo um ao outro através dos
séculos, e alguém sendo capaz de perceber isso. Esta sua série de narrativas
sobre viagens temporais leva historiadores de Oxford a diferentes momentos da
História. Uma espécie de Túnel do Tempo.
“Firewatch” (1982), o conto que deu origem a esta série,
mostra um desses estudantes vindo do futuro para ajudar a proteger a Catedral
de São Paulo, em Londres, durante os bombardeios alemães na II Guerra.
Nesse conto inicial já se menciona, meio indiretamente,
uma aluna chamada Kivrin, que acabou de chegar da Idade Média, bastante
abalada. Doomsday Book é a narração
do que aconteceu a essa personagem citada de passagem em alguns parágrafos do
“Firewatch”
O parágrafo transcrito no começo deste texto, a história
da donzela que mergulha na floresta escura, é a própria história da mulher que a está
contando, uma estudante de História na faculdade de Brasenose, em Oxford, que
recua ao século 14 para examinar as condições de vida do campesinato inglês
durante a Guerra dos Cem Anos.
Kivrin Engle, a estudante, traz um sobrenome em homenagem
a uma famosa autora de viagem temporal, Madeleine l’Engle, autora do clássico
juvenil A Wrinkle in Time (1963), livro
que a geração de Willis (ela nasceu em 1945) provavelmente leu na juventude.
Kivrin tem algo de quase Nikita, quase uma Lara Croft
crononauta. Estuda plantas medicinais, latim, religião, equitação, toma umas
quinze vacinas diferentes, passa o pente fino na história e na geografia da
época. Instala um tradutor simultâneo no cérebro. Instala um minigravador
camuflado no pulso e ativado ao pressionar juntas as palmas das mãos. Desse modo,
ao se misturar ao mundo do passado, poderá gravar seus relatórios enquanto dá a
impressão de estar rezando em voz baixa.
Em alguns momentos, Kivrin me lembrou também a Psicóloga,
de outro livro que traduzi, o Aniquilação
(Ed. Intrínseca) de Jeff VanderMeer. Uma mulher jovem, expedita, imaginativa
mas atenta, capaz de se virar sozinha, e um tanto introspectiva. Disposta a
saltar num abismo e saber que, mesmo que continue viva, essa pessoa que ela é
agora deixará de existir durante essa experiência.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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