sábado, 3 de dezembro de 2016

É preciso coragem para ser autêntico. Mas só assim evitamos a mediocridade de uma vida guiada pela opinião alheia

Tantos saltos e paetês, e ela ali de rasteirinha, jeans e camiseta branca estampada com a face do John Lennon. O pé não doía, a consciência também não. Era a vantagem de ser a expressão límpida de si mesma, era o bônus por reproduzir na roupa, no jeito e na forma a autêntica versão de suas escolhas. Haveria olhares tortos e murmúrios de recriminação. Mas o incômodo de ser tachada de peixe fora d’água era engolido pela enxurrada de liberdade que lava a alma dos que preferem a contramão da obviedade. Tantas cenas forçadas, encenações tolas. E ela ali, protagonista da própria festa, alheia a teatros e enredos falsos.

Há, ao redor dos que destoam da manada, muros erguidos com julgamentos rígidos. É preciso acionar as asas para burlar as cercas e alçar voo. Negar a imposição do que não convém, rasgar o manual antiquado que dita regras que limitam e idiotizam. Não existe maior martírio que anular vontades em nome do apreço externo. Quanta tolice em quebrar-se por dentro para satisfazer expectativas dos que não colarão depois os cacos do estrago interno. Há que andar na linha vez ou outra, render-se às convenções sociais que permitem alguma ordem no caos. Mas há, sobretudo, que resgatar a coragem de ser original em meio a tanta produção em série. Reinventar-se como arte blindada à descaracterização que domina os tempos atuais. Na veracidade dos gestos e gostos estrutura-se a imagem de quem não se sujeita a ser personagem piegas de folhetins forjados.

É hora de passar o batom vermelho para ir à missa, escolher o curso que a família considera absurdo, propor ao chefe o caminho alternativo ao modelo de 1995. Pode ir à praia na chuva, comer salada em fast food, se divorciar aos 25 e recomeçar aos 60. Pode nunca ter filhos, não gostar de chocolate, ter cabelo bem curtinho, recusar a proposta irrecusável. Pode falar “não”, falar palavrão, ser gótica em família religiosa e “patty” em festival hippie. É hora de reverter a tradição em prol da sobrevivência da espontaneidade na guerra contra padrões. Por que escolher ser partitura de uma nota só com tanto samba bom? Não há razão para ser filme preto e branco com toda a paleta de cores que o mundo coloca à disposição.

A inadequação gera medo. É desconforto certo parecer carta fora do baralho. Mas haveria maior drama que enxergar no espelho o oposto do que se sonhou ser? Quão triste é o reflexo que possui em si a agonia de uma vida inventada sobre a falta de coragem de ser diferente! No fim do trajeto só sobra o que é de verdade. Na pista da festa, a melhor dança é a de quem carrega no corpo e na mente a autenticidade dos passos. Talvez, das caixas de som, enquanto tira a sandália rasteira e agora rodopia descalça, ela ouça, em consonância com seus movimentos, o clássico que se sagrou como trilha dos que bancam o peso (e a leveza) de serem quem são. “I am what I am — Por que não tentar ver as coisas de um outro ângulo? Sua vida é uma fraude até que você consiga gritar alto: ‘eu sou o que eu sou’.”


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