Tantos saltos e paetês, e ela ali de rasteirinha, jeans e camiseta
branca estampada com a face do John Lennon. O pé não doía, a consciência
também não. Era a vantagem de ser a expressão límpida de si mesma, era o
bônus por reproduzir na roupa, no jeito e na forma a autêntica versão
de suas escolhas. Haveria olhares tortos e murmúrios de recriminação.
Mas o incômodo de ser tachada de peixe fora d’água era engolido pela
enxurrada de liberdade que lava a alma dos que preferem a contramão da
obviedade. Tantas cenas forçadas, encenações tolas. E ela ali,
protagonista da própria festa, alheia a teatros e enredos falsos.
Há, ao redor dos que destoam da manada, muros erguidos com
julgamentos rígidos. É preciso acionar as asas para burlar as cercas e
alçar voo. Negar a imposição do que não convém, rasgar o manual
antiquado que dita regras que limitam e idiotizam. Não existe maior
martírio que anular vontades em nome do apreço externo. Quanta tolice em
quebrar-se por dentro para satisfazer expectativas dos que não colarão
depois os cacos do estrago interno. Há que andar na linha vez ou outra,
render-se às convenções sociais que permitem alguma ordem no caos. Mas
há, sobretudo, que resgatar a coragem de ser original em meio a tanta
produção em série. Reinventar-se como arte blindada à descaracterização
que domina os tempos atuais. Na veracidade dos gestos e gostos
estrutura-se a imagem de quem não se sujeita a ser personagem piegas de
folhetins forjados.
É hora de passar o batom vermelho para ir à missa, escolher o curso
que a família considera absurdo, propor ao chefe o caminho alternativo
ao modelo de 1995. Pode ir à praia na chuva, comer salada em fast food,
se divorciar aos 25 e recomeçar aos 60. Pode nunca ter filhos, não
gostar de chocolate, ter cabelo bem curtinho, recusar a proposta
irrecusável. Pode falar “não”, falar palavrão, ser gótica em família
religiosa e “patty” em festival hippie. É hora de reverter a tradição em
prol da sobrevivência da espontaneidade na guerra contra padrões. Por
que escolher ser partitura de uma nota só com tanto samba bom? Não há
razão para ser filme preto e branco com toda a paleta de cores que o
mundo coloca à disposição.
A inadequação gera medo. É desconforto certo parecer carta fora do
baralho. Mas haveria maior drama que enxergar no espelho o oposto do que
se sonhou ser? Quão triste é o reflexo que possui em si a agonia de uma
vida inventada sobre a falta de coragem de ser diferente! No fim do
trajeto só sobra o que é de verdade. Na pista da festa, a melhor dança é
a de quem carrega no corpo e na mente a autenticidade dos passos.
Talvez, das caixas de som, enquanto tira a sandália rasteira e agora
rodopia descalça, ela ouça, em consonância com seus movimentos, o
clássico que se sagrou como trilha dos que bancam o peso (e a leveza) de
serem quem são. “I am what I am — Por que não tentar ver as coisas de
um outro ângulo? Sua vida é uma fraude até que você consiga gritar alto:
‘eu sou o que eu sou’.”
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