Clubes italianos
“Imagine o leitor que alguém está traduzindo francês e se depara com a expressão la Seine, o rio que corta Paris. E que, todo prosa, dissesse: ‘Ah, se la Seine é feminino devo traduzir por a Sena. Esses bobalhões que dizem o Sena não sabem francês.’
“É assim,
exatamente assim, que está agindo quem trata os clubes italianos no
feminino. Adota um caminho tortuoso para acabar dizendo, todo prosa: ‘Eu
é que sei italiano. Esses bobalhões que dizem o Juventus não sabem de
nada.’
“Traduttore, traditore,
o sonoro e conhecidíssimo ditado é repetido universalmente nessa
roupagem porque só em italiano o trocadilho se consuma. E estarão sendo
traidores de seu próprio idioma — o português — os sabichões que
disserem a Juventus, a Roma, a Lazio, a
Inter. Porque o bom tradutor, para não ser traidor, precisa saber (e
isto é básico) não só o idioma de origem, mas principalmente o idioma
para o qual está traduzindo. E não sabe português quem diz a Juventus, como pode saber muito bem francês, mas também não sabe português quem traduz la Seine por a Sena,
‘porque é feminino em francês’. Aqueles clubes são femininos em
italiano. Quem diz ‘a Juventus’ ou ‘a Roma’ não está falando português.
“Uma pequenina e simplíssima explicação. Na Itália, usa-se o feminino para os clubes que são sociedades anônimas (Società per Azione, SPA). Os outros ficam no masculino. Mas isso em italiano. Não temos nada a ver com o modo de dizer italiano, como não temos de dizer a mar porque no original está la mer,
quando estamos traduzindo um texto do francês. Voltando à explicação:
entre os clubes italianos, o Milan, por exemplo, não é uma sociedade
anônima, então é tratado assim, no masculino. De modo que temos uma
verdadeira salada, que tentam nos enfiar pela goela abaixo os que querem
se mostrar sabichões em italiano. E tratar clubes no feminino é uma
agressão aos ouvidos brasileiros, como seria dizer a Sena e a mar.
“No Brasil, ainda que o Flamengo um dia viesse a se tornar uma sociedade anônima, ninguém diria a Flamengo.
Jamais. Tão forte é o gênio de nossa língua quanto à tendência de
tratar os clubes no masculino que não funciona neste caso nem a célebre
concordância elíptica (em nome da qual tantos crimes contra o idioma se
cometem). Veja-se o Palmeiras, por exemplo, cujo nome completo é
Sociedade Esportiva Palmeiras. Poder-se-ia argumentar com a existência
de um substantivo feminino oculto como Sociedade e dizer ‘a Palmeiras’. A
fórmula não vingaria, por artificial. Todo o povo diz ‘o Palmeiras’
mesmo. Como é artificial dizer ‘a Cabofriense’ ou ‘a Inter de Limeira’ a
partir da trôpega justificativa de que há um termo feminino oculto. A
vigorar argumento tão inconsistente, além de ‘a Palmeiras’, diríamos ‘a
Gama’ (o clube de Brasília: Sociedade Esportiva Gama), a São Caetano
(Associação Desportiva São Caetano), etc.
“Tudo na
vida tem exceção, é claro. Para confirmar a regra. Se o nome do clube
(não o dos complementos que o acompanham, que nada significam para a
linguagem do povo, já se viu) é feminino, dir-se-ia mesmo
escandalosamente feminino, como Portuguesa ou Ponte (Preta), então
teremos, a partir da mais elementar regra de concordância gramatical, um
artigo no feminino: ‘a Portuguesa’. Afinal, portuguesa é uma mulher,
uma mulher nascida em Portugal, não podemos masculinizá-la. E até para
clube italiano temos uma exceção: Fiorentina (florentina) é uma mulher,
mulher nascida em Florença. Não podemos tratá-la no masculino. Em bom
português, temos ‘a Fiorentina’, pois o nome do clube é feminino. O
resto todo é sem dúvida o Juventus, o Roma, o Lazio, o Inter de Milão, o
Udinese.”
(CASTRO, Marcos de. Pequeno dicionário de batatadas da imprensa. In: _____. A imprensa e o caos na ortografia. Rio de Janeiro: Record, 5. ed., 2008, pp. 190-2.)
Em tempo: Marcos de Castro é licenciado em Letras Clássicas e jornalista profissional.
Um comentário:
Estava escrevendo um comentário sobre clubes de futebol no facebook e fazendo gozações em cima dos escudos mais bregas (grêmio, corinthians e vasco), sem graça (goiás, joinville, náutico), pipas (são paulo, fortaleza, atlético goianiense), infantis (flamengo, juventude, avaí), bizarros (paysandu, paraná clube, criciuma), copiados(américa-rj, santos), lindos (internacional, botafogo, portuguesa e cruzeiro), ilegíveis (santa cruz, américa-mg) e cheguei ao escudo do(a ou as) palmeiras, que me parece um caso singular. Sua razão social é Sociedade Esportiva Palmeiras, o que lhe confere o artigo feminino singular (a sociedade). Se notarmos que seu escudo não faz menção ao tipo de agremiação, temos somente a palavra palmeiras, o que lhe confere o artigo feminino plural (as palmeiras), que são árvores da família das arecáceas, que inclui jerivás, coqueiros, palmitos, butiás, carnaúbas, babaçus, açaís, entre outras. Mesmo se esquecermos a origem italiana e aceitarmos a denominação O Palmeiras, estaremos ofendendo a língua portuguesa com um erro duplo de concordância nominal: de gênero e de número. Quanto ao escudo, estaria na categoria exagerados pois tem um escudo dentro do escudo, assim como o do sport do recife. Então, somando-se às exceções no machismo futebolístico como A Portuguesa e A Ponte Preta, considero que seria correto denominar A Palmeiras ou As Palmeiras. Seria mais fácil retomar o nome original e passar a ser chamado O Palestra Itália, já que palestra significa ginásio de esportes, homenagearia a colônia italiana e acabaria com a aberração "má vámu, parmêra"...
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