domingo, 25 de outubro de 2015

Conversas de mulher

Conheço-a há pouco tempo, mas tenho por ela a maior das simpatias. É mulher vibrátil, inteligente, bonita e espirituosa. Fala-me de coisas belas e boas da vida, e outro dia subitamente perguntou-me se não cogito de fazer uma operação plástica facial, que acabe com as minhas rugas, devolvendo-me ao rosto a louçania de passadas eras.

Isso aconteceu num encontro de rua, banal encontro de duas mulheres, não fosse a longa explanação que dela ouvi sobre a técnica do rejuvenescimento. Citou nomes de mulheres nacionais e estrangeiras muito jovens hoje e que realmente conheci maduras quando eu era menina.

— Veja, por exemplo, a Marlene Dietrich...

Conta-me que essas operações já estão sendo feitas no Brasil, que antigamente, para desenrugar-se, a mulher precisava ir a Paris, Londres, Viena ou Nova Iorque, onde a operação, sendo a mesma, é inteiramente diferente quanto ao custo.

— Em nosso país há médicos especializados e competentes realizando a operação pelo preço baratíssimo de cinqüenta mil cruzeiros.

Assim ela fala e eu ouço encantada: convenhamos que tem razão ; a recuperação da mocidade, mesmo e apenas aparente, vale muito mais do que qualquer quantia.

A conversa. continuou, e ouvi então esta enorme revelação: o perigo, o grande perigo é que muitas mulheres, quando saem da casa de saúde despidas de rugas, trazem no rosto um ar de total imbecilidade. Por isso é importante — muito importante — saber o que tirar, qual a ruga ou grupo de rugas que devem permanecer. O médico, além de bom operador deve ser também um esteta e um psicólogo para não liquidar na máscara feminina a marca da personalidade conquistada através, de. anos vividos.

Como estávamos ambas apressadas — ela para continuar fazendo compras e eu para trabalhar, despedimo-nos. Sua frase final andou comigo pelas ruas, gravada em mim:

— Essa coisa está ficando tão comum e obrigatória que daqui a cinco anos ouviremos uma mulher dizer que está com hora marcada num médico: — "Hoje vou fazer minha operação plástica" — como hoje diz que tem hora marcada no cabeleireiro ou no dentista. Tiraremos rugas como tiramos sobrancelhas.

Não desaprovo essas operações nem nego às mulheres o direito de defender e conservar a beleza, mas depois dessa conversa pensei. um pouco nas minhas rugas, pobres rugas que jamais serão desfeitas e que até aquele momento não tinham vivido um minuto sequer em minhas cogitações. Cinqüenta mil cruzeiros. Com eles, se os tivesse, quantos meses passaria em Paris? Ou viajaria o Amazonas? Que livros compraria?

As rugas de minha testa apareceram cedo. Depois li que elas são o prêmio concedido, a partir dos dezoito anos, às pessoas que costumam se preocupar com problemas seus e do mundo. Quantas preocupações tive, ainda menina., com a.s definições, os problemas da Metafísica, os sentimentais e mesmo os políticos. Quantas rugas criei as poucas vezes que votei?

Operando minhas rugas, eu poderia depois pensar sem que outras rugas nascessem, ou a operação me proibiria, cassaria meu direito a pensar? A quem estaria enganando sem rugas. a mim ou aos outros? E se depois da operação plástica eu ficasse com uma cara imbecil se bem que formosa ? Se eu me procurasse e não me encontrasse Pensei em minha mãe muito jovem ensinando que o importante: é ter sempre saúde mental, física e moral. Pensei em George Sand dizendo: — "Quando me examino vejo que as duas químicas paixões de minha vida foram a maternidade e a amizade." Com essas duas paixões quantas rugas terão nascido naquela tão fabulosa mulher?

De qualquer modo, cumprimentemo-nos: dentro em breve, neste país, com as operações plásticas a preço módico — cinqüenta mil cruzeiros — não mais haverá brotinhos, balzacas ou coroas. Infelizmente a divisão de classes continuará por algum tempo, e por isso no Brasil, daqui a pouco só serão velhas as mulheres trabalhadoras como eu e centenas de outras, e as mulheres operárias, aos milhares.

Manteremos as rugas: elas contam nosso destino.

ENEIDA

 A crônica acima foi extraída do livro “Aruanda”, Livraria José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1957, pág. 145, em mais uma colaboração do “Rato de Sebo” João Antônio Bührer.

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