O Nobel de Literatura, concedido à
bielorrussa Svetlana Alexievich, 67 anos, na última quinta-feira (7),
foi a senha para que se iniciassem duas barulhentas discussões em três
países: a Bielorrússia (ou Belarus), a Rússia e a Ucrânia.
A primeira delas envolve a nacionalidade
da literatura e da própria Alexievich. Os russos dizem que ela escreve
em russo e nasceu na União Soviética. Colocando inadvertidamente lenha
na fogueira, a própria autora disse, logo que recebeu o prêmio: “É muito
perturbador. O Nobel evoca imediatamente os grandes nomes de Búnin,
Pasternak e Brodsky”. Todos russos.
Ivan Búnin (Nobel de Literatura de 1933)
e Boris Pasternak (recebeu em 1960) nasceram na Rússia czarista,
produziram na União Soviética e foram opositores ao regime. Búnin,
inclusive, emigrou e morreu na França. Joseph Brodsky (Nobel de 1987)
nasceu durante a Segunda Guerra e morreu em Nova Iorque, exilado. Todos
escreviam em russo. E Svetlana Alexievich também. Então, como ela não
escreve em bielorrusso… Para os russos, ela é russa.
E a Ucrânia entre no jogo pelo simples
fato da escritora ter nascido em seu solo e de ter mãe ucraniana, mesmo
que tenha ido para Minsk ainda quando criança. Então é ucraniana.
Porém, para os bielorussos, ela cresceu,
estudou e se formou como jornalista no país. O pai era um militar
bielorrusso que fora transferido temporariamente para a Ucrânia. Além
disso — e eles estão corretos –, ela sofreu enorme influência de grandes
escritores do país, como Alés Adamóvich, o fundador do gênero de
romance-documentário que a escritora pratica. Então é bielorrussa.
A outra discussão
A outra discussão gira em torno dos
temas dos livros de Svetlana Alexievich. A partir de entrevistas — ela é
uma extraordinária entrevistadora — a autora se dedica a criar painéis
de vozes reais. Seus livros são “romances coletivos”, também conhecidos
como “romances corais”, ou “romances de evidências”. São pessoas que
falam de si mesmas numa espécie de coral.
Tais corais são formados por vozes de
sobreviventes da Segunda Guerra Mundial, do acidente nuclear de
Chernobyl, da campanha no Afeganistão, etc. Também há um livro sobre
como o povo sentiu a passagem do comunismo para o capitalismo. São
relatos pessoais, onde, apesar de a política permanecer subjacente, têm
um tom de forte crítica a várias gerações de governantes da União
Soviética, Bielorrússia e Rússia.
(A Bielorrússia tem o mesmo presidente desde a implosão da União Soviética. Aleksandr Lukashenko, conhecido como O Último Tirano da Europa, está no cargo desde 1994 em sucessivas e mui discutidas reeleições).
Deste modo, o Nobel teria sido concedido
a uma pessoa que dedica-se a tecer críticas à sociedade russa e
bielorrussa, isto é, a uma pessoa de posições claras, non grata para muitos.
Então, na quinta-feira à noite, enquanto
os amigos de Svetlana Alexievich faziam uma enorme festa numa vinoteca
de Minsk, parte dos jornais e redes sociais referiam-se a um Nobel dado a
uma autora que “odeia nosso país”.
Europeia
A escritora fala com grande tranquilidade sobre a primeira questão levantada, a de sua nacionalidade. “Eu sou europeia. Nasci na Ucrânia, de uma família que era metade do local e metade bielorrussa. Quase imediatamente após meu nascimento, fomos para a Bielorrússia. Durante mais de 12 anos eu vivi na Itália, Alemanha, França e Suécia. E há dois anos, voltei para Minsk”.
A Academia Sueca, anunciando sua
vitória, elogiou os “escritos polifônicos” de Alexievich, descrevendo-os
como “um monumento ao sofrimento e à coragem em nosso tempo”. Muito
influenciada pelo escritor Alés Adamóvich, que considera como seu
mestre, Alexievich tem a particularidade de deixar fluir diferentes
vozes em torno de um tema. Ela esclarece diversos destinos individuais,
descrevendo mosaicos que criam a certeza de tragédias reais. Alexievich
trabalha decididamente na faixa do drama e da morte.
Os livros
Em 1989, ela publicou Tsinkovye Málchiki (Meninos de Zinco),
sobre a experiência da guerra do Afeganistão. Para escrevê-lo,
percorreu o país entrevistando mães de soldados mortos no confronto. Em
1993, publicou Zacharovannye Smertiu (Encantados pela morte), sobre os suicídios cometidos por aqueles que não haviam conseguido sobreviver ao fim do socialismo. Em 1997, foi a vez de Vozes de Chernobyl,
um aterrador retrato da tragédia cuja devastação radioativa atingiu
principalmente a Bielorrússia. O livro vendeu 2 milhões de exemplares em
língua russa.
No ano passado, foi lançado O Tempo de Segunda Mão (ou O Fim do Homem Soviético,
em Portugal). Nesse novo trabalho, Alexievich se propõe a “ouvir os
participantes do drama socialista”. Para a escritora, o “homo
sovieticus” ainda continua vivo, e não é apenas russo, mas também
bielorrusso, turcomano, ucraniano, casaquistanês, etc. “Hoje vivemos em
Estados distintos, falamos línguas distintas, mas somos inconfundíveis,
rapidamente reconhecidos. Todos nós somos filhos do socialismo”, afirma,
referindo-se a seus “vizinhos de memória”. “O mundo mudou completamente
e não estávamos realmente preparados para isso.”
Falando à emissora sueca SVT, Svetlana
Alexijevich disse que o prêmio a deixou com um sentimento
“complicado”. A academia telefonou para ela enquanto estava em casa
“deixando passar o momento da divulgação do vencedor”, disse ela,
acrescentando que os mais de 3 milhões de reais do prêmio “comprariam
sua liberdade”. “Demoro muito para escrever meus livros, de cinco a 10
anos cada um. Eu tenho duas ideias para novos livros, por isso estou
muito satisfeita: agora vou ter dinheiro e tranquilidade para trabalhar
neles.”
Os romances corais
Alexievich nasceu no dia 31 de maio de
1948 na cidade ucraniana de Ivano-Frankovsk. Após a desmobilização do
pai do exército, a família retornou à Bielorrússia e se estabeleceu em
uma aldeia onde ambos os pais trabalhavam como professores. Ela deixou a
escola para trabalhar como repórter no jornal local na cidade de
Narovl.
Alexievich escreve contos, ensaios e
reportagens, mas diz que só encontrou sua voz sob a influência de Alés
Adamóvich. Na cerimônia de divulgação do prêmio, a crítica
literária Sara Danius disse que “não se trata de uma escritora de
eventos nem de análise política, é uma historiadora de emoções. O que
ela nos oferece é realmente um mundo emocional. O desastre nuclear de
Chernobyl e a guerra soviética no Afeganistão são pretextos para
explorar a indivíduo soviético e pós-soviético”.
Em Vozes de Chernobyl,
Alexievich entrevista centenas de pessoas afetadas pelo desastre
nuclear, indo desde uma mulher que, agarrada a seu marido morto, ouve os
enfermeiros lhe dizerem que “isso não é mais uma pessoa, é um reator
nuclear”, até os soldados enviados ao local. Fala de suas raivas por
terem sido “arremessados lá, como areia no reator”. Em Meninos de Zinco, ela reúne vozes da guerra do Afeganistão: soldados, médicos, viúvas e mães.
“Eu não pergunto às pessoas sobre a
política, eu pergunto sobre suas vidas: o amor, o ciúme, a infância, a
velhice”, escreveu Alexievich na introdução ao O Tempo de Segunda Mão (O Fim do Homem Soviético).
“Me interessam não apenas as tragédias vividas, mas a música, as
danças, as roupas, os penteados, os alimentos. Os detalhes diversos de
uma maneira desaparecida de viver. Esta é a única maneira de perseguir a
catástrofe”.
“A história está interessada apenas em
fatos; as emoções são excluídas do seu âmbito de interesse. É
considerado impróprio admiti-los na história. Eu olho para o mundo como
uma escritora, não como uma historiadora. Eu sou fascinada por pessoas
“.
Seu primeiro livro, A guerra não tem rosto de mulher,
tem como base entrevistas com mulheres que participaram da Segunda
Guerra Mundial. “É uma exploração da Segunda Guerra Mundial a partir de
uma perspectiva que era, antes do livro, quase completamente
desconhecido “, disse Danius . “Ela conta a história de mulheres que
estavam na frente de batalha na segunda guerra mundial. Quase um milhão
de mulheres soviéticas participaram na guerra, e esta era uma história
desconhecida. A obra foi um enorme sucesso na União Soviética, vendendo
mais de 3 milhões de cópias. É um documento comovente e íntimo, trazendo
para muito perto de nós cada indivíduo.”
Tradutores, editores e leitores
Embora Alexievich tenha sido traduzida
para o alemão, francês e sueco, ganhando uma série de importantes
prêmios por seu trabalho, as edições em inglês do seu trabalho são
escassas. Em Portugal, O Fim do Homem Soviético saiu este ano pela Porto Editora.
Seu editor francês diz que este livro é
uma pesquisa micro-histórica da Rússia da segunda metade do século XX,
indo até os anos Putin. Aliás, Alexievich é uma das vozes de oposição,
costumando criticar duramente Putin e Lukashenko em palestras para
leitores.
Bela Shayevich, que atualmente está
traduzindo Alexievich para o inglês disse que “esta vitória significa
que mais leitores serão expostos às dimensões metafísicas de
sobrevivência e desespero das tragédias da história soviética. Espero
que mais pessoas entendam o sofrimento provocado por circunstâncias
geopolíticas estranhas a elas”.
A opinião geral de seus admiradores é a
de que seus livros são muito incomuns e difíceis de categorizar. São
tecnicamente não-ficção, mas recebem um belíssimo tratamento literário e
de trabalho de linguagem. Sua tradutora inglesa faz uma reclamação: “Os
editores ingleses e americanos são relutantes em assumir riscos e não
gostam de livros muito trágicos. Não investem em um livro só porque ele é
bom. Agora, com Nobel, talvez a coisa mude”.
Nas entrevistas após o prêmio,
perguntaram a Alexievich sobre os refugiados na Europa. “A Europa agora
passa por mais um teste sobre sua própria humanidade. Estive
recentemente em Mântua, na Itália, e alguns amigos me convidaram para
“marchar de pés descalços”. Este tipo de marcha foi organizada pela
primeira vez em Veneza e agora está indo para todas as cidades. As
pessoas tiram os sapatos e caminham descalças pelas cidades em
solidariedade aos refugiados. Lá estavam refugiados, imigrantes e
italianos solidários a eles. E isto na Itália, onde o nacionalismo é
muito forte. Espero que, desta vez, a Europa seja aprovada no teste”.
Svetlana Alexievich é apenas a 14ª mulher a receber o Nobel de Literatura. Ao todo, 111 autores já foram premiados.
(*) Com Elena Romanov
Fonte aqui
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