Confesso que jamais identifiquei os sabores sutis (‘notas’ de frutas vermelhas, de tabaco e disto e daquilo) de que falam os de paladar apurado, para nos humilhar
Os consumidores de vinho se dividem em dois tipos. Os que sabem o que estão bebendo e os que não sabem, mas gostam assim mesmo. Estes também se dividem em dois tipos, os que gostam sinceramente, embora não o aproveitem tão completamente quanto os entendidos, e os que se obrigam a gostar por ostentação. Desses se diz que não bebem o vinho, bebem o rótulo. Eu pertenço à divisão 1 da categoria B, a dos que apreciam sem entender.
Invejo quem fala com autoridade dos taninos e do retrogosto de um vinho, mas confesso que jamais identifiquei os sabores sutis — “notas” de frutas vermelhas, de tabaco e disto e daquilo — de que falam os de paladar apurado, para nos humilhar. Mas quase tanto quanto bebê-lo, gosto de ler histórias sobre o vinho e seus adeptos, genuínos ou fingidos.
Um “New York Times” recente trazia o necrológio de um comerciante e autor de livros sobre vinhos chamado William Sokolin. Numa noite de abril de 1989, Sokolin levou uma garrafa de um vinho raríssimo a um jantar com outros comerciantes e enófilos no restaurante Four Seasons, em Nova York. O vinho era um Château Margaux 1787, encontrado numa cave parisiense, e que teria pertencido a Thomas Jefferson, um dos fundadores da República americana e um conhecido amante das amenidades da vida, como boa comida, boa bebida e a companhia de escravas na sua cama senhorial. O rótulo do vinho tinha inscrito “Th.J”. Sokolin, que o comprara por 212 mil dólares, pretendia vendê-lo por mais de 500 mil.
Quando ia exibi-la, bateu com a garrafa num quina de mesa, furando-a. O vinho jorrou pelo buraco como sangue de uma carótida. “Cometi um assassinato”, diria Sokolin, depois. Ele ainda tentou vender a garrafa furada num leilão, propondo um lance inicial de 30 mil dólares, que ninguém fez. Lances de dez mil e de cinco mil também foram pedidos e não feitos. Finalmente alguém ergueu a mão e ofereceu: “100 dolares!”. Sokolin preferiu doar a garrafa a uma instituição de caridade.
O que ele só ficou sabendo mais tarde, e diz tudo o que se precisa saber sobre verdadeiros amantes de vinho, é que, depois da sua saída do Four Seasons, desolado com o desastre ocorrido, muitos dos presentes atiraram-se ao chão para provar o líquido derramado do tapete. O veredito foi de que o vinho do Thomas Jefferson tinha se deteriorado.
Luís Fernando Veríssimo
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