Estou
sempre a anotar. Faço isso também, talvez com mais avidez, quando viajo. É uma
maneira de demarcar meu território. O papel me serve de fronteira. As palavras
são minha cerca. Remexendo em meus cadernos, encontro dezenas, talvez centenas,
dessas anotações dispersas de viagem. Não têm uma ordem. Não formam um
conjunto, mas uma dispersão. Não têm um objetivo _ não pretendo reuni-las em
livro. Não sei por que escrevo. Sei: para me proteger. Em um caderno de notas
iniciado em abril de 2013, estou no aeroporto de Guarulhos. São 14h30 do dia 23
de abril. Estou na sala de embarque, aguardo uma conexão para Cuiabá onde farei
uma palestra sobre Manoel de Barros. Copio aqui o que anotei. Para que? Talvez
para forçar um destino para o que não tem destino. Para prender aquilo que não
se prende. Vamos lá.
Sentimento de estar entre parêntesis. As
horas mais longas. Nenhuma apreensão. (Apreensão, anoto depois, vem do latim,
"apprehensione". Significa receio, preocupação, cisma. Na filosofia,
designa o conhecimento imediato de um objeto, em oposição a processos mais elaborados,
como a compreensão, o julgamento, o raciocínio. Justamente por esse contraste,
aprecio muito a apreensão. Ela não falsifica, não explica, não justifica. Ela
mostra.) Na revistaria, a notícia do crescimento dos evangélicos na política.
Um mundo em transfiguração. Um mundo que se fecha, que talvez retroceda. Rumo a
que? Quem pode saber? E, nesse caso, onde fica o futuro?
Trato de cuidar do presente. Na sala de
embarque 19, uma família se acomoda à minha frente. Uma família = todas as
famílias. Por que tanto medo de errar? Por que se copiam tanto? Minha repulsa à
cópia se realça. Em torno, os passageiros, em sua espera, se parecem também. Eu
sou um deles. Eles se parecem comigo e eu com eles. Não há como escapar. Há? A
diferença é que escrevo. Mas que diferença isso realmente faz? Para eles,
nenhuma. É só um hábito. Para mim, toda. O caderno me serve de proteção
(casca). A escrita delimita e protege. A escrita cuida: caráter curativo da
escritura. Só quem não se agarra ao que escreve não pode sentir isso. A escrita
como salvação? Não salvação, mas localização. Ao escrever, eu me situo. Eu me
visto de mim. Volto a mim, como alguém que volta de um desmaio.
Para que serve um caderno de viagens? Para
que servem essas anotações? Elas são uma âncora: me prendem a mim mesmo, não me
deixam escapar de mim. Não me deixam esquecer quem sou, não permitem que eu
fuja do presente. São a coluna com que me ato a mim mesmo. Transformam meu
presente em ato. Não só espero: escrevo. Enquanto o menino à minha frente joga
com seu carrinho, jogo (brinco) comigo mesmo. O menino lançou o carrinho aos
meus pés e não vê o que fez. Agora se dá conta e vem pegá-lo. Também eu lanço
alguma coisa com essa escrita e não vejo o que lanço. É um movimento quase
autônomo - como a respiração. Escrever me devolve o ar. Respiro através das
palavras. Elas são o ar com que precariamente me encho. Delas vivo: com elas
sinto que estou vivo.
Não: não é um exercício de estilo, não quero
"escrever bem". Tento apenas grudar o presente ao que sou. Não deixar
o presente escapar. Engaiolá-lo nas palavras. A escrita é uma gaiola _ mas a
vida, mais esperta do que eu, escorre entre as grades. A vida é sempre mais
ampla do que a escrita. Mais do que tudo isso. Muito mais que as notas transcritas
em um blog. A palavra é "muito mais", mas também "muito
menos", porque é sempre inadequada e insuficiente. Nada dá conta do que
sinto nessa sala de espera. Nada a resume _ nada a define. As palavras não
passam de um brinquedo a que me agarro.
José
Castello
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