sexta-feira, 15 de maio de 2015

Encanto

Para não sucumbir a um asco terminal pela capacidade humana de se autodestruir, Paris tentava se reinventar como a capital mundial de uma nova cultura
Bons ficcionistas não dão bons críticos — e vice-versa. Me ocorrem três exceções a esta sentença: os americanos John Updike e Saul Bellow e o italiano Italo Calvino. Já como exemplos do vice-versa, lembro dois, Susan Sontag e George Steiner, ótimos críticos que não acertaram a mão como ficcionistas. John Updike produziu tanta não ficção, entre ensaios literários e resenhas, que o surpreendente é ter tido tempo para produzir seus romances, que também foram muitos.
Italo Calvino escreveu com a mesma qualidade suas obras e seus comentários sobre as obras dos outros. E lê-se com igual prazer um romance e uma crítica de Saul Bellow, talvez o melhor escritor americano surgido depois da turma de 20 e 30 (Hemingway, Fitzgerald, dos Passos etc.).
Como aquela turma, Bellow teve sua experiência obrigatória em Paris, mas, diferente deles, pegou a Europa no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, ainda convalescendo dos seus horrores, e, no caso de Paris, da humilhação da ocupação nazista. Poupadas de bombardeios, Paris e Praga foram as duas únicas grandes capitais europeias que não precisaram renascer de escombros depois da guerra.
Mas os efeitos da barbárie eram evidentes no clima intelectual que Bellow encontrou em Paris. Segundo ele, o existencialismo e todos os outros “ismos” literários e políticos surgidos no pós-guerra nasceram como alternativa ao niilismo, o único sentimento coerente com a convulsão que acabara de envolver a Europa. Para não sucumbir a um asco terminal pela capacidade humana de se autodestruir, Paris tentava se reinventar como a capital mundial de uma nova cultura, como já tinha sido mais de uma vez no passado.
Bellow, que sempre teve algo de reacionário, não acreditou na renascença de Paris. Mas nunca perdeu o encanto pela cidade, e escreveu que Deus se sentiria feliz em Paris como em nenhum outro lugar da Terra. Para Bellow, Deus nunca seria incomodado com preces, súplicas e encantações, pois estaria cercado de infiéis na cidade mais secularista do mundo. E nos fins de tarde, como milhares de parisienses, poderia relaxar no seu café favorito. Escreveu Bellow: “Existem poucas coisas mais agradáveis, mais civilizadas, do que um tranquilo terrasse ao anoitecer”.
Falando em Paris e em terrasses, há um grande pequeno livro do Sérgio Augusto chamado “E foram todos para Paris”, que é um guia da cidade pelos endereços, lugares preferidos — e cafés favoritos — de visitantes ilustres, personalidades e artistas, do começo do século passado até anteontem. Melhor do que ler o livro, só estar em Paris — lendo o livro.
Papo vovô
Lucinda, nossa neta de 7 anos, às vez adota uma palavra que passa a usar como preâmbulo de tudo o que diz. Por estes dias a palavra era “tecnicamente”. Como em “Tecnicamente, vou fazer xixi”. Depois de um tempo parou de usar a palavra. E nós nunca descobriremos com é fazer xixi tecnicamente. 
Luís Fernando Veríssimo

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