domingo, 17 de maio de 2015

Kundera no museu

           No texto de abertura de "Um encontro", coletânea de ensaios de Milan Kundera lançada no Brasil em 2009 (tradução de Teresa Bulhões da Fonseca), a que volta e meia retorno, o escritor checo faz uma inspiradora reflexão sobre a arte de Francis Bacon (1909-1992) _ o grande mestre da pintura figurativa moderna. Fala-se em "figurativo" e talvez se pense, imediatamente, em uma série de figuras ordenadas e de retratos bem delineados, tudo aquilo que não encontramos na assombrosa arte de Bacon.

          O século 20 destroçou a noção clássica de figura. "Os retratos de Bacon são a interrogação dos limites do Eu", afirma Kundera. Despedaçam todas as ilusões que ainda tínhamos a respeito de uma realidade estável e "completa". Talvez seja melhor falar não em uma figuração, mas em uma desfiguração. Alteração extrema do real que, sugere Kundera ainda, nos conduz a uma série incômoda de perguntas. "Até que grau de distorção um indivíduo continua sendo ele mesmo? Durante quanto tempo um rosto querido que se distancie na doença, na loucura, na raiva, na morte, continua reconhecível?" Perguntas que, talvez, possam ser sintetizadas em uma pergunta fundamental: "Onde está a fronteira atrás da qual um Eu deixa de ser um Eu?"

         No século 20, e apesar da arte abstrata e das operações demolidoras das vanguardas, uma figura continua a ser uma figura. Só que agora uma figura inteiramente desfigurada. Bacon pintou retratos de seres em estado de explosão. Estados que alongam a noção de Eu e a tornam muito mais problemática e complexa. É uma constatação difícil. Admite Kundera que, há muito tempo, via Samuel Beckett (1906-1989) como um duplo de Bacon. Esta é uma primeira impressão bastante recorrente. Algumas ideias do escritor irlandês reforçam esse laço. 

          Contudo, e ao contrário de Bacon, Beckett foi, sem dúvida, um intelectualista. Escreve Milan Kundera a respeito: "Eu me pergunto se as ideias de Beckett sobre sua arte não acabaram matando sua criação". Arrisca-se mais ainda o escritor: "Há alguma ao mesmo tempo sistemática demais e inteligente demais nele, e talvez seja isso que sempre me incomodou". São dois movimentos opostos. Para alargar o Eu aos seus limites mais inaceitáveis, Bacon precisava derramá-lo _ como alguém esbarra em um copo cheio d'água. Ao contrário, Samuel Beckett comprimia sua arte em definições secas, uma busca obsessiva do exato.


          As duas posições levavam à mesma derrota _ eram posições irrealizáveis. Simbolizam, de alguma maneira, um duplo movimento que se desenrola no interior de toda arte. De um lado, a busca da expansão _ sabendo que a existência de um núcleo inabalável nunca a fará completa. De outro, a busca de uma contração intelectual, que aprisione em conceitos aquilo que insiste em se derramar.

          O interessante nesse contraste entre Bacon e Beckett é que, de alguma forma, ele sintetiza (mas aqui já voltamos aos cárceres da síntese!) toda a arte do século 20, e também aquele que se entorna, em um empuxo inexorável, em todo o novo século 21. O século 20 produziu uma fissura estrutural de que, provavelmente, a arte não se livrará mais. Ela tomará muitas formas - contraditórias -, produzirá novos Eus - infinitos - mas prosseguirá sua caminhada de despedaçamento que é, ao mesmo tempo, uma nova maneira de observar a construção.

          Lembra Kundera que, desprezando as classificações dos especialistas, "sempre que pode, Bacon apaga as pistas para desarmar os experts que querem reduzir o sentido de sua obra". Sempre rejeitou, por exemplo, a ideia de associar sua obra à palavra "horror". Sempre sublinhou o papel decisivo do acaso _ "acaso que acontece durante seu trabalho", descreve Kundera, "uma mancha de cor fortuitamente colocada que muda de repente o próprio tema do quadro". Quanto mais a arte se derrama e o Eu se alonga, mais artistas como Beckett lutam para conceituá-la e dominá-la. 

          Não sei dizer quanto bem, ou quanto mal, eles se fazem. Sei que, entre Bacon e Beckett, fico, em definitivo com Bacon. Kundera parece reforçar minha posição: "Os açougues são horríveis, mas quando Bacon fala deles não esquece de ressaltar que, para um pintor, existe ali aquela grande beleza da cor da carne". Beckett é, sem dúvida, um grande escritor, mas em suas páginas a vida parece gelada demais. Desprovida justamente daquilo que em Bacon sobra: o sangue. Se observarmos as telas de Bacon como espelhos, nelas nos veremos cada vez mais distante de nós _ mas sempre com um coração que, aos saltos, insiste em nos amarrar a nós mesmos.



José Castello

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