Por que ler a "Alice", de Lewis
Carroll? A preguiça nos diz que se trata de um relato dedicado às crianças e
apenas a elas. De fato, Carroll começou a narrar sua história durante um
passeio de barco, num improviso, para três meninas, filhas de um amigo, todas
na faixa dos 10 anos de idade. O que, um século e meio depois, nós, adultos,
poderíamos querer com ela? O que esperar das aventuras de uma garota que,
seguindo um coelho falante, cai em um buraco que a leva a um mundo onde tudo é
possível?
Releio a narrativa de Carroll, mais uma vez, agora
na edição em capa dura da Zahar, com tradução de Maria Luiza X. de A. Borges e
ilustrações de John Tenniel. Releio e experimento, outra vez, a sensação de que
nunca a li. De onde vem esse assombro? "Alice" me oxigena os
pensamentos. Contra o bom senso e o sentido comum, o livro oferece, a cada
página, novas maneiras de pensar. O sentido nunca é fixo, vai pelo menos em
duras direções, não apenas uma. Para cada pergunta, existem sempre pelo menos
duas maneiras de responder.
Não é um livro prático. Concluem os apressados: “Não
ajuda a viver”. Mas ajuda sim. As "Aventuras de Alice no País das
Maravilhas" não é um relato só para as crianças _ embora elas logo se
apaixonem pelo livro. Sim, ele reconstitui o método caótico e livre, o estilo
desconexo e independente com que pensamos na infância, época em que não devemos
nada a ninguém, em que não temos dívida alguma para com os saberes autorizados.
Mas, muito mais que às crianças, o relato de Carroll se dirige, eu penso agora,
aos adultos. Ele desafia nossos dogmas e máximas indiscutíveis. Ele os entorta
e revira. Ele os questiona, relativizando sua pose de seriedade.
"Alice" nos dá coragem para pensar o
inimaginável. Pode haver liberdade maior? Nos empurra para novas formas de
pensar que vão muito além dos domínios da lógica. As operações intelectuais
lógicas não passam de mecanismos precários com que nos defendemos da grande
desordem do humano. Com elas lutamos para capturar o que não se captura. Em vez
de fixas como pedras, nossas idéias são móveis e inconstantes. Diante delas,
Alice age como uma filosofa que, em vez de repetir velhos conceitos, arrisca-se
a emitir novos pontos de vista.
Por mais que lutemos para ordenar as coisas, o
mundo humano é dominado pelo desalinho e pelo improviso. Nem mesmo os significados
das palavras oferecem garantias _ para constatar isso, basta percorrer
livremente os verbetes dos dicionários. Nesse mundo caótico, todo o nosso
esforço de sentido não passa de um comovente, apesar de pouco útil, ato de
sobrevivência. As coisas se passam sempre de outra forma. Não temos controle
sobre nada _ e só começamos a viver realmente quando aceitamos isso.
Ler "Alice", em conseqüência, nos ajuda a
entender a potência do pensamento criativo e não normativo. Para a verdade, as
coisas podem ser úteis tanto do lado direito quanto do avesso. A verdade não
tem bom senso. A verdade é selvagem e paradoxal _ e nem sempre suportamos isso.
Pois Alice, com suas aventuras sem pé nem cabeça, nos ajuda a suportar. Volta e
meia, a menina se pergunta quando as coisas voltarão a acontecer “de forma
natural”. O que ela descobre, não sem alguma dor, é que não existe tal forma
estável e sensata de existir. A natureza é incoerente e é raivosa e é maluca
também.
Alice compreende, aos poucos, a importância de
valores que os adultos desprezam como a distração, a subversão e a desarmonia.
As coisas ora crescem loucamente, ora diminuem radicalmente, e nunca se sabe ao
certo quando isso irá acontecer. Difícil de agüentar. Nós, adultos, sofremos
como a Duquesa, que insiste em fechar suas falas com uma “moral”, não
suportando que elas permaneçam abertas, expostas à ventilação das novas idéias
e de inesperadas perspectivas.
O próprio tempo, em "Alice", não é digno
de confiança. Não é só o Coelho Branco que se agarra desesperadamente a um
relógio _ a própria Rainha manda matar a Duquesa simplesmente porque ela chegou
atrasada. Lendo o livro de Carroll, entendemos um pouco melhor a origem de
nossa interminável ansiedade. Estamos sempre querendo não só cumprir regras,
mas encontrar culpados para os que as infringem. Como faz a Rainha ao acusar o
Chapeleiro de “assassinar o tempo”. Para se salvar do controle real, o frágil
Chapeleiro se apega a uma regra inesperada: “Agora são sempre seis horas”.
Regra que desmoraliza todas as regras.
Nós também: estamos sempre a inventar regras na
esperança de domar o que não se pode domar. O que, provavelmente, não se deve
domar. A verdade insuportável, que a doce Alice nos obriga a encarar, é que
vivemos em um mundo no qual existem muito mais enigmas do que respostas. Um
mundo inconstante, cheio de coisas que servem para outras coisas _ e não para
aquelas que imaginamos a que estejam destinadas.
Durante o Chá Maluco, a Lebre oferece a Alice um
vinho que não existe. Qual de nós pode aceitar isso? E, no entanto, quantas
vezes nos sustentamos apoiados em precárias esperanças que não passam de
miseráveis ilusões? O Chapeleiro propõe um enigma: “Por que um corpo se parece
com uma escrivaninha?” A resposta é o que menos interessa _ até porque é uma
resposta impossível. O que importa é o desassossego que a pergunta desencadeia.
O modo como ela nos desloca de nossa vaidade e de nossa arrogância, enfatizando
a penúria que nos define.
A "Alice" de Carroll é um eficaz antídoto
contra o orgulho ostensivo e a insolência. A verdade é flácida. As palavras
estão sempre a deslizar _ “Você disse corpo ou porco?”, o gato pergunta a
Alice. Depois ele desaparece, sobra apenas sua boca. Calma, Alice constata: “Já
vi um gato sem sorriso, não um sorriso sem gato”. Qual de nós teria a mesma
tranqüilidade? É tudo muito estranho _ mas, ao mesmo tempo, muito óbvio. “Não
adianta bater”, o Lacaio-Peixe diz a Alice, “porque estou do mesmo lado da
porta que você”. Não adianta, também, fingir que ocupamos o lugar da verdade.
Como as crianças, também nós, adultos, estamos sempre do lado do susto e do
sobressalto. Não adianta fugir _ o melhor é imitar Carroll e fazer algo
criativo disso.
(Coluna publicada
no suplemento "Prosa" de O GLOBO no sábado 23/05/2015)
José Castello
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