Um amigo me escreve dizendo que durante uma noite de insônia, em um hospital de Paris onde havia sido operado, escreveu mentalmente dois capítulos de um romance que há muitos anos cortejava em vão. Na noite seguinte, nova insônia, e mais dois capítulos. Ao sair de lá, levava dez capítulos do romance debaixo do braço, pois de manhã, ao acordar (se assim se pode dizer de alguém que praticamente não dormiu), pegava papel e lápis e anotava tudo aquilo que a insônia lhe havia ditado. Embora cubano, meu amigo Joel Rosell estava sendo vítima da distante maldição de Moudros.
Moudros é uma aldeia da ilha grega de Limnos, o que nos autoriza a imaginá-la branca como são brancas as aldeias gregas agarradas nas pedras e franjadas do mar. Igualmente brancas, porém, eram até poucos anos atrás as noites dos seus habitantes. Ali ninguém dormia ou deveria dormir. Uma antiga maldição encarregava-se de espantar o sono dos pobres aldeões.
A história tem origem no século XIX, em plena guerra greco-turca, quando os habitantes de Moudros mataram uns tantos turcos e atiraram os cadáveres num poço de propriedade de um mosteiro do monte Athos. Foi um erro. Os turcos encontraram os cadáveres e, pensando que os monges tivessem sido os assassinos, retribuíram matando todos eles e incendiando suas construções. Todos, não, dois escaparam, refugiaram-se em outro mosteiro, e de lá emitiram sua maldição: doravante, para remoer sua culpa, nenhum habitante de Moudros haveria de dormir.
A partir de então, durante mais de cem anos, todo dia 23 de agosto, os cerca de três mil monges da comunidade religiosa do monte Athos repetiram a maldição em forma de canto litúrgico.
Nos quartos escuros das brancas casas de Moudros certamente houve aldeões que passaram noites sem dormir. Que belos romances, que elegias, que concertos teriam produzido se, em vez de pensar nos frades, tivessem ouvido seu ditado interior.
Penso no meu amigo em seu leito de hospital. Na primeira noite, quando em meio ao desconforto e à dor o sono não veio, ele deve ter começado a escrever sem empenho, à toa, só para atravessar o tempo que o separava da manhã. Mas na segunda noite, quando já tinha dois capítulos e a urgência de chegar aos seguintes, desejou que o sono não viesse, para permitir-lhe avançar no silêncio.
Na insônia, tanto faz abrir os olhos ou mantê-los fechados, tudo é escuridão. E na escuridão uma palavra, uma palavra que inevitavelmente trará outras atrás de si, bate como um aríete na consciência exigindo atenção, exigindo portas abertas. O insone sabe que se a aceitar perderá a possibilidade de adormecer. E ainda assim ouve sua voz como um canto de sereia. Se ceder à palavra, à infindável família das palavras, terá que dobrar-se às suas exigências, será posto a ferros como o remador de uma galé. E remará a noite toda levando adiante a nau que, palavra a palavra, se constrói. À noite, não basta submeter-se às palavras, há que memorizá-las, repeti-las à medida que se fazem à frente e são escolhidas, gravá-las no basalto da memória para que não se esfumem com o dia.
Sim, é claro, pode o insone levantar-se, acender uma luz na escuridão da casa, ligar o computador. Mas sabe que se o fizer estará perdendo a condição quase fetal da insônia, em que as palavras não são bem palavras mas vozes, ecos vindos de um distante flutuar, que trazem discursos alheios a nós mesmos. Então ele rema e rema na escuridão, para alcançar um capítulo, um poema ou apenas uma frase.
Moudros é uma aldeia da ilha grega de Limnos, o que nos autoriza a imaginá-la branca como são brancas as aldeias gregas agarradas nas pedras e franjadas do mar. Igualmente brancas, porém, eram até poucos anos atrás as noites dos seus habitantes. Ali ninguém dormia ou deveria dormir. Uma antiga maldição encarregava-se de espantar o sono dos pobres aldeões.
A história tem origem no século XIX, em plena guerra greco-turca, quando os habitantes de Moudros mataram uns tantos turcos e atiraram os cadáveres num poço de propriedade de um mosteiro do monte Athos. Foi um erro. Os turcos encontraram os cadáveres e, pensando que os monges tivessem sido os assassinos, retribuíram matando todos eles e incendiando suas construções. Todos, não, dois escaparam, refugiaram-se em outro mosteiro, e de lá emitiram sua maldição: doravante, para remoer sua culpa, nenhum habitante de Moudros haveria de dormir.
A partir de então, durante mais de cem anos, todo dia 23 de agosto, os cerca de três mil monges da comunidade religiosa do monte Athos repetiram a maldição em forma de canto litúrgico.
Nos quartos escuros das brancas casas de Moudros certamente houve aldeões que passaram noites sem dormir. Que belos romances, que elegias, que concertos teriam produzido se, em vez de pensar nos frades, tivessem ouvido seu ditado interior.
Penso no meu amigo em seu leito de hospital. Na primeira noite, quando em meio ao desconforto e à dor o sono não veio, ele deve ter começado a escrever sem empenho, à toa, só para atravessar o tempo que o separava da manhã. Mas na segunda noite, quando já tinha dois capítulos e a urgência de chegar aos seguintes, desejou que o sono não viesse, para permitir-lhe avançar no silêncio.
Na insônia, tanto faz abrir os olhos ou mantê-los fechados, tudo é escuridão. E na escuridão uma palavra, uma palavra que inevitavelmente trará outras atrás de si, bate como um aríete na consciência exigindo atenção, exigindo portas abertas. O insone sabe que se a aceitar perderá a possibilidade de adormecer. E ainda assim ouve sua voz como um canto de sereia. Se ceder à palavra, à infindável família das palavras, terá que dobrar-se às suas exigências, será posto a ferros como o remador de uma galé. E remará a noite toda levando adiante a nau que, palavra a palavra, se constrói. À noite, não basta submeter-se às palavras, há que memorizá-las, repeti-las à medida que se fazem à frente e são escolhidas, gravá-las no basalto da memória para que não se esfumem com o dia.
Sim, é claro, pode o insone levantar-se, acender uma luz na escuridão da casa, ligar o computador. Mas sabe que se o fizer estará perdendo a condição quase fetal da insônia, em que as palavras não são bem palavras mas vozes, ecos vindos de um distante flutuar, que trazem discursos alheios a nós mesmos. Então ele rema e rema na escuridão, para alcançar um capítulo, um poema ou apenas uma frase.
(COLASANTI, Marina. À noite, ronda a maldição de Moudros. In: ─ . Os últimos lírios no estojo de seda. Belo Horizonte: Editora Leitura, 2007, pp. 12-4, “Crônicas Ilustradas”, vol. 1.)
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