Há um gancho narrativo dos mais elementares e que sempre
funciona. Por isso mesmo, deve ser usado com parcimônia, porque depois da
terceira vez o leitor pensa, meio sem pensar, “ih, lá vem isso de novo”.
Suponhamos o seguinte trecho de um romance:
“Smith deixou as coisas no hotel, lanchou num bar, assistiu um filme, e
de noite foi para a orla da praia, onde pessoas caminhavam, andavam de
bicicleta, passeavam com as crianças. Ele lembrou daquela vez, há mais de dez
anos, em que ele e Marybelle tinham ido para a casa dos amigos na Flórida.
Marybelle. Fazia tempos que não pensava nela. Onde estaria naquele
momento, morando onde, fazendo o quê? (Etc
e tal).”
O gancho consiste em mencionar o personagem, e usar o
nome como uma espécie de crachá abrindo o parágrafo seguinte.
Esta manobra informa ao leitor que estão saindo do continuum de ação para o de digressão e
memória.
Abrir assim um parágrafo, anunciando um nome de pessoa,
um lugar específico, um fato ou uma época (“Ah, aquelas férias na montanha com
os primos!”). Basta isso para que o leitor ressete a bússola mental e acompanhe
a narrativa sem nenhum percalço.
O leitor consegue acompanhar a mais absurdista das
histórias, se a narração dela tiver um mínimo de sinalização narrativa
coerente.
Aí estão Campos de Carvalho, Robert Sheckley, Ionesco,
Jarry. Nesses livros acontecem somente coisas bizarras, mas o leitor não tem o
menor problema em acompanhá-las. Seu
problema é quando a sinalização narrativa funciona de outra forma, como em
Joyce ou como o Catatau de Paulo
Leminski, que são fluxos de frases pouco consequenciais.
Quando não existe essa sinalização visível, o leitor tem
a sensação de estar o tempo todo recomeçando do zero. Ele não armazena
narrativa; cada frase lida desaparece sem criar uma continuidade, e ele se
sente o tempo todo de mãos vazias.
Já vi leitor reclamar de certos livros vanguardistas: “O
cara fica o tempo todo taxiando e não decola.”
É uma descrição perfeita. O “decolar” que o leitor espera é o
arrebatamento de uma narrativa onde ele sinta que alguma coisa está aconecendo
e que ele (leitor) está conseguindo acompanhar.
Leminski... Os dois romances publicados pelo poeta
curitibano (Agora é que são elas, Catatau) são muito diferentes, e nenhum
dos dois obedece a essa estilística. Poderíamos chamar essa estilística mais
convencional de “estilística de best-seller”,
se isso não passasse a idéia errônea de que livros assim vendem mais do que os
outros. Não vendem. Apenas são livros mais fáceis de entender, porque o autor
vai sinalizando o rumo para o leitor, usando artifícios assim.
Como aquelas bandeirolas que o pessoal finca nas trilhas
entre terras pantanosas, avisando aos traseuntes: “venha por aqui”.
O leitor precisa de continuidade, precisa saber onde está
pisando, mesmo que a paisagem em torno seja de árvores desconhecidas ou
surreais.
Esse recurso de usar um termo para transferir o parágrafo
seguinte se assemelha ao recurso que o cinema usava antigamente para introduzir
um flashback, uma cena de rememoração.
O sujeito estava sentado num banco do calçadão da praia.
Alguém ao lado dizia: “Você está tão pensativo...” E ele dizia: “Estou lembrando de quando
estive na Flórida com uma antiga namorada. Marybelle.”
A câmera se aproximava devagar do rosto dele, que ficava
em silêncio, com o olhar perdido; a imagem começava a ondear, como se estivesse
sendo vista através de uma água em movimento; e surgia em fusão a imagem de
outra praia ensolarada ou enluarada (para fazer contraste com a praia do
presente) e o personagem, mais jovem e com roupa mais jovem, andando de mãos
dadas com uma moça.
Isso fez parte da gramática do cinema durante dez mil
anos, mas a narrativa mais moderna, de cortes rápidos, transferiu esse recurso para
a prateleira dos clichês com prazo vencido. Hoje o cara abre uma gaveta, pega
uma foto de praia, a câmera mostra a foto, e no segundo seguinte já estamos na
praia do passado – sem preparação, sem aviso. E o público entende. Por que? A
sinalização mudou. No cinema, desde os filmes de Jean-Luc Godard.
Godard. Ele próprio, que era tão iconoclasta, sabia que
nenhuma sinalização funciona para 100% das pessoas. Eu sou um leitor tarimbado
e acho esse recurso do “parágrafo anunciado” o ó, mas sei também que para
muitos leitores ele ajuda a transição entre duas faixas mentais.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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