Antonio
Carlos Secchin aceita o desafio e sai em busca dessa urgência do presente
Além da obsessão
pela ruptura e pelo antinormativo — heranças obsoletas de um século que passou
e que já tiveram sua hora de brilhar —, onde pode estar a poesia contemporânea?
O que dela esperar? A resposta ao presente não deve ser dada de costas, com o
saudosismo inútil do século que se foi, mas de frente. Onde essa nova poesia
relampeja e brilha? Esse é o grande desafio, hoje, dos poetas: encontrar o
timbre e o sentimento de seu tempo. Nem no passado perdido, tampouco em um
futuro invisível, mas aqui, nesse agora supervisível e superexposto em que nos
encontramos. Aqui, exatamente aqui, aonde, depois de tudo, e seja como for, nós
chegamos.
O poeta e crítico
Antonio Carlos Secchin aceita o desafio e sai em busca dessa urgência do
presente. Um presente desordenado e até insuportável, que só com muito esforço
e persistência habitamos; um presente que parece fora de si, deslocado de seu
centro, ou, o que talvez seja ainda pior (mas talvez não seja): parece
desprovido de um centro. Em uma brecha da memória, de repente, uma voz ecoa
dentro de mim: “Eu lhe digo que não é tão mal assim”. A voz pertence a Jean, o
personagem de O hipopótamo, de Eugène
Ionesco — um autor (“do absurdo”) que, no Brasil de hoje, se torna subitamente
atual. Já que chegamos até aqui, já que escolhemos esse caminho, há de ter
sido, apesar de tudo, por alguma (boa ou má) razão. Mas de Ionesco e de seu
“Hipopótamo” eu tratarei outro dia; o que me interessa aqui e agora é Desdizer,
de Antonio Carlos Secchin.
Detenho-me em
particular — eu que aprecio os pensamentos breves e cortantes — nos Aforismos (página 113 em diante), retirados de
dois livros anteriores, Poesia e desordem (Topbooks), de 1996, e Escritos
sobre poesia & alguma ficção(Editora da UERJ), de 2003.
Meditações velozes, nas quais a carga poética se concentra em seu ponto máxima,
se encapsula em si mesma, contém-se com grande esforço, lutando contra o temor
de explodir. “A poesia representa a fulguração da desordem”, inicia Secchin,
nos deixando, desde logo, diante do mais difícil. A fulguração é isto: uma
claridade muito intensa, tão intensa que, em vez de mostrar, embriaga e cega.
Assim nos deixa a desordem de nossos miseráveis dias: atordoados e cegos. Assim
todos nos sentimos, tateando no escuro, em busca de um ponto de apoio, de um
abrigo. E, no entanto, como essa luz fulminante nos atrai! Como ela nos
transforma em pequenas mariposas diante da claridade inalcançável.
Sabemos, porém,
que o mau caminho do bom senso “nada promete além de rituais para deus nenhum”.
Não é só o bom senso que nos falha: falta-nos também o senso, isto é, a
direção. Falta-nos um caminho e é este que o poeta (o corajoso Secchin) se
propõe, mais uma vez, a construir. Não com a retórica vazia dos estetas — linguagem
opaca, que entorpece e barra hoje a mente de tantos poetas —, mas com o sangue
dos poetas vivos, que não precisam de boas ideias nem de intenções sensatas
para ser. Que apenas são.
Contudo,
desprezar o sentido, aceitar o turbilhão, não significa acolher o caos — até
porque ele é um caminho que não leva a parte alguma. Alerta-nos Secchin, com
razão: “A poesia não pretende ser espelho do caos, hipótese em que tudo, isto
é, nada, seria poético”. Nem a formalização extrema, com suas ideias encouraçadas;
tampouco o vazamento cruel de todos os impulsos. Há algo a construir — poesia,
devemos usar a palavra ainda — que nos contenha sem nos sufocar. Há uma
esperança, apesar de todo o caos, e por isso Secchin escreve: “Nossa liberdade
passa não apenas pelas palavras em que nos reconhecemos, mas, sobretudo, pelas
palavras com as quais aprendemos a nos transformar”.
Trabalhar o caos,
porém, não é aderir a ele, mas revertê-lo em transformação. Não temer a
transformação — porque isso seria temer a própria poesia. Não se esquivar das
novas formas, contanto que elas venham de dentro de nós, e não de vozes
alheias. Aceitar a escuridão inevitável que o caos inclui, e que na verdade o
define. Diz Secchin: “A poesia é igualmente um espaço de sombras, tentativa de
perceber o escuro no escuro”. Mas, mesmo na noite extrema, “o poeta não deixa
de ser um iluminado”. É com esse paradoxo — é dentro dele — que o poeta deve se
mover. Aceitar-se, diz Secchin, como “um iluminado de sombras”. Essas sombras,
ele nos lembra, não refletem apenas o país despedaçado em que pisamos. Mais uma
vez: não vêm só de fora, mas as carregamos dentro de nós. Lembrando Drummond,
nos alerta Secchin: “herança não é apenas aquilo que recebemos, mas aquilo de
que não conseguimos nos livrar”.
Há na palavra (há
em nós mesmos) um núcleo duro, uma voz original, de que não escapamos, porque
ela nos constitui. Trabalhar essa herança (destino?) é, enfim, encontrar seu
próprio caminho, em vez de repetir, copiar, macaquear o alheio. Já de nada nos
servem as belas palavras de ordem que ecoam desde o século passado: “A
antiordem foi moderna no modernismo; repeti-la ainda hoje, sob a capa da
vanguarda, é iludir o leitor, ao dar-lhe o passado de presente”. A dificuldade
é esta: agarrar (suportar) o presente. É o presente que nos enlouquece; mas ele
é também, como nas terapias, a matéria-prima da qual devemos nos arrancar.
Matéria da
poesia, que deve nos arremessar direto no coração do leitor. Propõe Secchin o
poema como “um objeto legível”, isto é, um objeto que saiba sair de si e se
lançar sobre o mundo. Um instrumento afiado (Cabral falaria em uma faca) que
perfure o mundo. Como lembra Secchin, ao trabalhar com paciência e afinco a
superfície textual, nem por isso João Cabral desejava “restituir-lhe a
superfície sem mácula”; queria, ao contrário, “limpá-la da limpeza excessiva”.
Alguma imperfeição, algum resto — alguma sombra — sempre nela restará, e não só
como sobra, mas como matéria essencial da própria escrita.
É preciso ainda,
nos diz Secchin, desistir da ideia onipotente de “ver tudo”, projeto que, em
seu limite, pode significar a morte de todas as palavras. “O risco é que muitos
poetas acabam mudos de tanto ver”. Mais uma vez: incluir as sombras, aceitar os
defeitos e as incorreções; em vez de se lamentar de sua escrita incompreensível
(caos), dela fazer a escrita possível. A opção pelo agora coloca em cena o
possível. E só porque inclui o possível, a poesia conserva seu caráter de
invenção e de descoberta. Anota Secchin: “Se eu já soubesse o que o poema
diria, não precisaria escrevê-lo”. É na escrita suja e sombria, é na luta
sangrenta com as palavras que, resplandecendo na desordem, um poeta se faz.
JOSÉ CASTELLO
É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar,
entre outros livros. Vive em Curitiba (PR).
JOSÉ CASTELLO (JORNAL
RASCUNHO)
(Disponível em: http://rascunho.com.br/fulguracao-da-desordem/.
Acesso em: 20 de janeiro de 2018.)
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