sábado, 20 de janeiro de 2018

Escravos donos de escravos intrigam historiadores brasileiros

"Negras livres vivendo der suas atividades", Jean Baptiste Debret

Os casos de ex-escravos donos de escravos são relativamente comuns – há exemplos deles por todo a América, principalmente em cidades onde o crescimento da economia abria oportunidades para pequenos empreendedores. Mais raras e perturbadoras são as histórias de escravos com escravos – pessoas que, mesmo antes de conquistar a liberdade, compraram gente para si próprias.

Imagine o leitor o espanto que deve tomar os historiadores quando, ao examinar documentos antigos, encontram registros como estes:

Em 17 de maio do ano de 1788, se enterrou nesta sepultura um escravo chamado João, do nosso escravo Ignácio dos Santos.

Em 29 de março de [17]89 se enterrou nesta sepultura uma escrava do nosso escravo Damásio, de Camorim, chamada Maria.

Ignácio dos Santos e Damásio eram escravos da Ordem Beneditina do Rio de Janeiro, que mantinha registros detalhados de nascimentos, batismos, casamentos e mortes dos trabalhadores de suas fazendas, igrejas e mosteiros. Não eram donos de si próprios, mas possuíam outras pessoas.

O historiador João José Reis encontrou diversos casos de escravos-senhores em documentos baianos do século 19. Já Carlos Eugênio Líbano Soares, vasculhando registros de batismo da Bahia do século 18, achou “um número espantoso de escravos que possuíam escravos”, como afirmou num estudo sobre o tema. Eis um exemplo de registro de batismo que dá essa informação:

Joaquim, Nagô, com 22 anos de idade aparente, escravo de Benedito, Hauçá, solteiro, e este também escravo de dona Ponciana Isabel de Freitas, branca, viúva, [moradora] ao Cais da Loiça. Foi Padrinho Domingos Lopes de Oliveira, benguela, forro, solteiro, da Freguesia de Santo Antonio Além do Carmo.

Como escravos se tornavam senhores? E por que não compravam a própria liberdade antes de adquirir esse tipo de propriedade? Alguns se tornavam senhores por herança. Se uma negra liberta e proprietária morresse, seus bens seriam herdados pelos filhos, e podia acontecer de esses filhos ainda viverem em cativeiro. Como a escravidão era um costume socialmente aceito na época, os escravos não viam contradição em possuírem escravos.

Mais comum era o caso dos negros, principalmente das grandes cidades, que conquistaram a confiança de seus senhores e desfrutavam de tanta autonomia para tocar os negócios que não pensavam em se alforriar. Possuir escravos provavelmente lhes conferia mais benefícios e um status mais alto que a liberdade.

Um exemplo é o africano Manoel Joaquim Ricardo, tema de um artigo do historiador João José Reis. Em 1842, quando foi testemunha em um processo judicial, Manoel que tinha de seu senhor “a autorização para negociar por si e adquirir quaisquer bens, mas também uma ampla licença de morar fora da casa daquele senhor”. Comerciante de alimentos e pessoas em Salvador, Ricardo comprou três mulheres – entre elas uma menina de 12 anos – quando ainda era escravo. Morreu livre em 1865, dono de quatro casas e 28 negros, patrimônio que o colocava entre os 10% dos cidadãos mais ricos da Bahia.

Costumamos retratar os personagens da história como vilões e mocinhos. Ignácio dos Santos, Damásio, Benedito e Manoel e outros tantos escravos-senhores embaralham essa visão simplista. Interpretaram ao mesmo tempo o papel de opressores e oprimidos, vítimas e algozes da escravidão brasileira.
 
 Leandro Narloch - Gazeta do Povo
 
* O texto acima é um trecho inédito do meu novo livro, “Escravos”, primeiro volume da coleção “Achados & Perdidos da História”. Para quem se interessou, o livro chega às livrarias nas próximas semanas.

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