O livro que era uma casa. A casa que era um país
Todos os povos amam a Paz. Os que passaram por uma guerra sabem que
não existe valor mais precioso. Sabem que a Paz é um outro nome da
própria Vida. Vivemos desde há meses sob a permanente ameaça do regresso
à guerra. Os que assim ameaçam devem saber que aquele que está a ser
ameaçado não é apenas um governo. O ameaçado é todo um povo, toda uma
nação.
Pode não ser este o momento, pode não ser este o
lugar. Mas é preciso que os donos das armas escutem o seguinte: não nos
usem, a nós, cidadãos de Paz, como um meio de troca. Não nos usem como
carne para canhão. Diz o provérbio que “sob os pés dos elefantes quem
sofre é o capim”. Mas nós não somos capim. Merecemos todo o respeito,
merecemos viver sem medo. Quem quiser fazer política que faça política.
Mas não aponte uma arma contra o futuro dos nossos filhos. É isto que
queria dizer, antes de dizer qualquer outra coisa.
Que me seja
perdoado este empolgado introito. Que me seja perdoada a falta de
etiqueta que deveria começar por saudar a presença do Presidente da
República, o Presidente Jacinto Filipe Nyussi. Na verdade,
Excelentíssimo Presidente, talvez eu tenha adiado esse momento porque um
escritor não deveria nunca declarar-se sem palavras. Na verdade,
sabendo da sua intensa e preciosa ocupação, eu não encontro palavras
para lhe agradecer a honra da sua presença.
O que quero dizer é
saudar o seu apelo para repensarmos o modo como nos concebemos como povo
e como nação. Queremos ser parte desse esforço, queremos aprender a ser
um país que não exclui, um país plural e diverso. Queremos ajudar a
construir uma nação que assume, sem medo, as suas diferenças. Esta nova
atitude pode ser a cura para uma espécie de autismo de que vínhamos
padecendo. Quero saudar a presença do Presidente Joaquim Chissano, é um
prazer imenso revê-lo.
É difícil imaginar quanto, mesmo ouvindo,
podemos ser surdos. Seletivamente surdos. Escutamos os que nos são
próximos, escutamos os que nos obedecem, escutamos o que nos agrada
ouvir. Escutamos os do nosso partido, escutamos sobretudo quem não nos
critica. Tudo o resto não existe, tudo o resto é mentira, tudo o resto é
calúnia. Tudo o resto é proferido pelos “outros”. E é quase um
paradoxo: porque se ocupam páginas inteiras dos jornais a dizer que os
“Outros” não devem ser ouvidos. Gastam-se horas de programação
radiofónica e televisiva para dizer que os outros não disseram nada.
Esses “outros” que querem questionar o que fazemos, esses outros são
“estranhos”, a caminho mesmo de serem “estrangeiros”. A verdade, porém, é
que ninguém pode anular a existência desses “outros”. Ninguém pode
negar que são moçambicanos. Ninguém pode saber se têm razão se não
deixarmos que falem livremente. Esta é a grande lição do Presidente
Nyussi que entendeu reconciliar uma nação apartada de si mesma. É ele
que nos lembra que esses que dizem “não”, são da mesma família dos que
dizem “sim”. Esta é uma mesma família que dispõe de uma única casa. Não
existe outro lugar, não existe outro destino senão este que dá pelo nome
de Moçambique.
Digo tudo isto sem qualquer embaraço. Porque todos
nós, a começar por si, Senhor Presidente, queremos fugir da pratica da
bajulação. Com a sua atitude de abertura e simplicidade, o Presidente
sugere uma outra relação, mais próxima, mais verdadeira. Apesar de tudo,
é fácil imaginar que junto a Vossa Excelência já se criou um cortejo de
aduladores. Felizmente, veio da sua parte um sinal de alerta: assim que
tomou posse, o Presidente Filipe Nyussi começou a receber gente que não
batia palmas, gente que tinha interrogações e levantava críticas. Os
seus ministros estão a fazer o mesmo, estão a escutar os que pensam
diferente, estão a sentar-se com os que deixaram de ser ministros, estão
a aprender desses outros que estavam condenados à condição de já terem
sido alguém. Parece pouco perante os gigantescos problemas que
enfrentamos. Mas esta forma de lidar com as pessoas pode sugerir uma
outra forma de lidar com os grandes os desafios.
Por tudo isto
queria muito dizer-lhe: muito obrigado, Senhor Presidente. Muito
obrigado por nos ter devolvido a nossa dimensão de família. Muito
obrigado por ter reabilitado o nosso estatuto de moradores na mesma
casa. Durante muito tempo fomos conduzidos a construir fronteiras que
nos separavam em pequenas nações dentro da grande Nação moçambicana.
Durante muito tempo houve quem sugerisse que havia categorias de
moçambicanos, uns mais autênticos que os outros. Ainda hoje sobrevive em
alguns esse olhar de polícia de identidades. Ainda hoje há quem avalie
os outros pela cor da sua pele, pela cor da tribo, pela cor do seu
partido. Ainda hoje, há os que, em lugar de discutir ideias, atacam
pessoas. E ainda prevalecem os que, em lugar de procurar soluções,
procuram modos de esconder os problemas. Toda esta cosmética foi sendo
feita em nome da unidade e do patriotismo. Toda esta encenação de
normalidade é uma herança que pedia uma resposta firme. Esta resposta
foi trazida por si. Sem grandes proclamações, mas de um modo firme e
continuado. Conhecemos hoje essa sua mensagem: podemos ter os recursos
que tivermos. Não disso é tão promissor como o nosso patrimônio humano
feito de tanta gente tão diversa.
O Presidente está a criar uma
dinâmica que é bem mais do que uma nova política. É uma nova cultura. E
esta cultura pode marcar uma diferença em toda história de Moçambique.
Parabéns por quanto já acendeu como esperança, parabéns pelo seu modo
paciente, sem recurso ao autoritarismo, sem uso da demagogia fácil.
Parabéns pelo caminho iniciado para devolver à política a sua dimensão
ética e humana.
Magnífico Reitor, Professor Doutor Lourenço do Rosário
Dizem
que os escritores são donos das palavras. Não são. As palavras,
felizmente, não tem dono. Às vezes, sinto pena que assim seja. Porque se
tivesse esse poder eu o aliviaria das formas de tratamento que são bem
mais pesadas que estas minhas novas vestimentas.
Na verdade, o
Professor Doutor Lourenço do Rosário não precisa do lustro de um título
seja ele qual for. Lourenço do Rosário conquistou um lugar de respeito
não apenas na academia mas na sociedade moçambicana como um homem
empenhado com a sua gente e com a sua pátria. E essa autoridade moral
que vem exercendo na sua função de mediador das conversações no Centro
de Conferências Joaquim Chissano. Sabemos como é difícil encontrar,
entre nós, personagens capazes de reunir tão amplo consenso. Somos uma
nação que foi convidada a assumir-se em dualidades extremas. Os que
defendem a lucidez da isenção foram sempre olhados com desconfiança.
As
suas recentes palavras são um alerta para quem se esquece que o país
não pertence a nenhum partido. Eu vou reproduzir essas suas palavras com
o risco de o estar a citar por via dos jornais (e os jornais são mais
criativos do que qualquer escritor). O Professor terá dito: “No fundo, o
partido da oposição está a revelar a sua pretensão em cumprir aquilo
que a gíria popular chama de “chegou a nossa vez”.
Traduzindo as
suas palavras na linguagem da oralidade que Professor Rosário tão bem
conhece o resultado poderia ser assim: é que para uns, a política é uma
panela. É preciso comer muito e rápido porque a colher é muito disputada
e a refeição pode durar pouco. Para outros, contudo, a política ainda é
a nobre arte de servir os outros, a política ainda é a missão de
colocar acima de tudo os interesses de todos. Possivelmente quem tanto
reclama contra a partidarização não está contra o princípio em si mesmo.
Quer, sim, partidarizar a dois. Não me importa o nome dos partidos. A
minha questão não é tanto de ordem política que, para isso, pouca
vocação me resta. É uma objeção de natureza moral. Importa-me como
cidadão que persista, em alguns dirigentes moçambicanos, a ideia de que
Moçambique é um quintal privado. Um quintal cujo destino é ser
parcelado, conforme interesses e conveniências.
Permita-me Senhor
Reitor que, apesar da solenidade deste acto, o trate pelo qualificativo
mais honroso que conheço que é o de “professor”. Não existe outro título
que a mim mais me honre. Durante anos, dei aulas em diferentes
faculdades em Maputo. Ainda hoje, passados quase dez anos, esses meus
alunos passam por mim e tratam-me por professor. Não podem imaginar o
quanto isso me comove e quanto receio não ter tamanho para encher aquela
palavra. Professor não é quem dá aulas. É quem dá lições. Não é aquele
que vai à escola ensinar. É aquele cuja vida é uma escola.
Pois o
nosso Professor Lourenço do Rosário chamou-me há uns meses para me
comunicar que a Universidade Politécnica me tinha escolhido para receber
este grau acadêmico. Ele confessou que receava que eu não aceitasse
esta distinção. Não sou uma pessoa de títulos, nem de honrarias. Mas não
fui capaz de dizer que não. Por causa da pessoa que me falava, por
causa da instituição que ele representava. Ainda tive coragem de lhe
perguntar: mas a cerimônia vai ser com protocolos de fardas, discursos e
chapéus? E ele respondeu laconicamente: vai ter que ser. E aquele “vai
ter que ser” não deixava espaço para negociação.
Demorei meses a
me habituar à ideia desta tão solene solenidade. Quando pensava que já
me tinha conciliado com o fantasma das vestimentas, aconteceu um pequeno
e infeliz incidente. É que tive a triste ideia de mostrar aos meus
netos fotografias de uma outra cerimônias de doutoramento. E um deles,
entusiasmado, perguntou: mas, avô, vais ter que vestir estas saias
compridas? Pois eu quero aproveitar este momento para tranquilizar a
minha querida companheira, a Patrícia, que está ali sentada e dizer-lhe o
seguinte: Patrícia, por baixo destas longas saias continua a estar um
homem de calças.
Quero falar ainda de Luis Bernardo Honwana, o meu
padrinho. A palavra “padrinho” ganhou nos dias de hoje uma conotação
deslustrosa e, a partir de agora, haverá mesmo, meu caro Luís Bernardo,
quem te peça para dares um jeito e arranjes umas vestimentas para algum
amigo carente de títulos. Quero dizer, no entanto, que, no teu caso, me
reencontro plenamente naquilo que é a etimologia da palavra “padrinho”
que é o guia e de norteador. Na verdade, há muito que o Luís Bernardo,
sem o saber, vem cumprindo esse papel de modelo na minha actuação como
escritor e como pessoa. É preciso repetir aqui o quanto nós, escritores
moçambicanos, somos devedores a Luís Bernardo. O que ele nos deixou como
legado é bem mais do que ele escreveu. É uma espécie de manifesto
inaugural, uma instauração de caminhos que nós depois viemos a trilhar.
Luís Bernardo Honwana, José Craveirinha, Noémia de Souza e o João Dias
foram os primeiros 4 vértices dessa construção de vozes que, a um certo
momento proclamaram: nós queremos escrever a história com a nossa
própria caligrafia. Luís Bernardo, bem sei que és avesso a estes tratos:
mas eu não posso deixar de expressar a minha infinita gratidão por
seres quem és: uma figura tutelar e inspiradora na escrita, na vida e no
pensamento.
Há aqui algo que devo ainda revelar: comecei a
trabalhar como jornalista exatamente no mesmo jornal em que LBH se havia
iniciado também como repórter. Esse jornal chamava-se a TRIBUNA. Aquele
foi um tempo muito curioso porque havia um jogo de descobertas. Havia
um jornalismo que andava à procura do seu próprio país; mas havia também
um país que andava à busca de um jornalismo que fosse seu. E essa dupla
procura pedia um jornalismo feito paredes meias com a literatura. Não
foi por acaso que não apenas o Luís Bernardo mas José Craveirinha, Rui
Knopfli, Carneiro Gonçalves e o Luis Carlos Patraquim foram todos eles
jornalistas e escritores. Eu devo muito a essa gente, a esse ambiente de
inconformismo que reinava na redação dos jornais. Recordo o primeiro
dia que me apresentei na redacção e fui chamado por alguém que eu
venerava como poeta e que era o Rui Knopfly. E ele perguntou: queres ser
jornalista? E antes mesmo de eu responder ele passou-me uma folha de
papel. Nessa folha estava reproduzida uma frase de um cantor norte
americano chamado Frank Zappa. E a frase dizia o seguinte: “o jornalismo
de hoje consiste em colocar jornalistas que não sabem escrever,
entrevistando pessoas que não sabem falar, para pessoas que não sabem
ler. “ Foi um bom começo de profissão.
Lembrou Luis Bernardo
Honwana os meus pais. E estou grato por essa lembrança que faz justiça à
história da minha família. Tudo o que sou vem daí, aquela é nascente do
meu Tempo e do tempo dos filhos, dos netos e dos que vierem depois. O
mundo em que nasci e me fiz homem alimentava-se do preconceito. Criava
muralhas para separar e graduar as raças. As muralhas não ofendiam
apenas os que ficavam do lado de lá. Os do lado de cá, convertiam-se
eles mesmos em estereótipos. Éramos, de um e do outro lado, diminuídos
pelo medo e pelo desconhecimento. Acreditamos que o efeito dos
preconceitos raciais e tribais é o de tentar desvalorizar uma outra
raça. E isso é verdade. Esses preconceitos resultam também numa outra
pérfida consequência que é a negação da existência de pessoas
singulares, cada uma com a sua identidade própria. Eis o que faz o
racismo, o sexismo e o tribalismo: cada pessoa deixa de ser uma criatura
única, passando a ter a identidade do seu grupo. Deixa-se de ter um
rosto, uma voz, uma alma: passamos a ser identificados por um rótulo
geral: os negros, os brancos, os matsuas, os macuas, os do Norte, os do
Sul. Fala-se de alguém e há uma voz que diz: ah, já sei como ele é,
conheço esses tipos.
Caros amigos
Irei falar sobre a erosão dos valores morais e de como pode um escritor ajudar na reabilitação do tecido moral da sociedade.
Escolhi
este tema porque não conheço ninguém que não se lamente da perda de
valores morais. Este é um assunto sobre o qual temos um imediato
consenso nacional. Todos estão de acordo, mesmo os que nunca tiveram
nenhum valor moral. E até os que tiram vantagem da imoralidade, até
esses, depois de lucrarem com da ausência de regras, se queixam que é
preciso travar a falta de decoro.
Um dos caminhos que nos pode
ajudar a resgatar essa moral perdida pode ser o da literatura. Refiro-me
à literatura como a arte de contar e escutar histórias. Falo por mim:
as grandes lições de ética que aprendi vieram vestidas de histórias, de
lendas, de fábulas. Não estou aqui a inventar coisa nenhuma. Este é o
mecanismo mais eficiente e mais antigo de reprodução da moralidade. Em
todos os continentes, em todas as gerações, os mais velhos inventaram
narrativas para encantar os mais novos. E por via desse encantamento
passavam não apenas sabedoria mas uma ideia de decoro, de decência, de
respeito e de generosidade.
Há certa de trinta anos atrás Graça
Machel – que era então Ministra da Educação – convocou um grupo de
escritores para lhes dizer que estava preocupada. Estou preocupada,
disse ela, estamos a ensinar nas escolas valores abstractos como o
espírito revolucionário, do patriotismo, o internacionalismo. Mas não
estamos a ensinar valores mais básicos como a amizade, a lealdade, a
generosidade, o ser fiel e cumpridor da palavra, o ser solidário com os
outros. E ela pediu-nos que escrevêssemos histórias que seriam
publicadas nos livros de ensino. Graça Machel tinha a convicção que uma
boa história, uma história sedutora, é mais eficiente do que qualquer
texto doutrinário.
Eu queria ilustrar o poder das histórias com
dois pequenos exemplos. Nestes próximos momentos partilharei convosco
duas vivências e o modo como essas experiências produziram em mim
duradouras lições.
O primeiro episódio – uma nação à procura de um hino
Ainda
há pouco entoamos nesta sala o Hino Nacional. Este hino tem uma
história e eu estou ligado a essa história. Aconteceu assim: no início
da década de 80, Samora Machel decidiu que o Hino Nacional então vigente
deveria ser mudado. Ele tinha razão: a letra era mais um louvor à
própria Frelimo do que de uma exaltação da nação moçambicana. Estávamos
ainda longe do multipartidarismo, mas Samora tomou essa decisão. E nessa
maneira que era a sua, “requisitou” 4 poetas e 5 músicos e fechou-os
numa moradia na Matola com a incumbência de produzirem não uma, mas
várias propostas de hinos. Eu era um dos 4 poetas. Eram tempos de
guerra, a única coisa que havia nas lojas eram prateleiras vazias. Todos
os dias saímos de casa com uma única obsessão: o que trazer para comer
para a nossa família. Pois, nessa altura, de repente, estávamos numa
casa com piscina, rodeado de mordomias e servidos de comida e bebida.
Confesso que nos primeiros dias ficamos de tal modo fascinados que pouco
trabalhávamos. Quando, a meio da tarde, escutávamos as sirenes dos
carros dos dirigentes nós corríamos para o piano e improvisávamos um ar
de grandes cansaços. Ao fim da tarde, eu e os meus colegas entregávamos
às nossas esposas que nos vinham visitar, recipientes com a comida que
cada um de nós tinha poupado durante o dia. E foi assim que, ao fim de
uma semana, produzimos uma meia dúzia de hinos que foram ensaiados por
um grupo coral e apresentados a uma comissão avaliadora. Havia duas
propostas que mereciam a nossa preferência: uma delas era esta que agora
é o nosso hino nacional, a Pátria Amada. A outra era baseada numa
composição do maestro Chemane e tinha um estribilho que dizia: “Pátria
de heróis! Levanta a tua voz! Viva Moçambique, povo unido, A estrela do
amanhã brilhará!” O grupo coral que apresentou esta proposta em vez de
Pátria de Heróis cantava: “Pátria de arroz” e a proposta ficou
esquecida.
O que sucedeu é que, por razão que desconheço, a
iniciativa de Samora não teve seguimento. Samora morreu, o grupo de
artistas foi desfeito e cada um de nós voltou para a bicha à espera do
repolho e do carapau. E nunca mais nos lembramos do que havíamos feito.
Uma
década depois, o novo parlamento pluripartidário procurava um novo hino
nacional. E eu fiz parte de um grupo de trabalho criado pela Assembleia
da República. Esse grupo juntava pessoas apontadas pelo Partido Frelimo
e pela RENAMO. Devo dizer que trabalhamos de facto juntos, num ambiente
de concórdia tal que nos esquecíamos de que representávamos duas forças
rivais. Fizemos dois concursos públicos mas as propostas recebidas eram
todas elas muito fracas. O falecido Albino Magaia publicou então um
artigo relembrando os hinos que, dez anos antes, um grupo de artistas
havia criado. E foi assim que se resgataram esses registos quando
estávamos nos últimos dia de trabalhos da assembleia. Escolhemos o
Patria Amada com algumas dúvidas. O que não havia dúvida, porém, era que
se o hino não fosse aprovado naquele dia, ter-se-ia que esperar pela
próxima sessão meses depois. E aquela era uma questão de enorme
sensibilidade e urgência.
Pois nesses derradeiros momentos, os
colegas da RENAMO colocaram objecções sobre algumas passagens da letra.
Para dizer a verdade, a maior parte dessas objeções tinha sentido.
porque alguns dos versos daquela letra eram realmente marcados pelo
tempo de revolução. Já não se exaltava nenhuma força política. Mas
falava-se de proletários, falava-se no Sol vermelho. Pedi ao grupo de
trabalho uns minutos e, ali num quarto ao lado, alterei as passagens que
suscitavam polémica. Foi ali que surgiu o “Sol de Junho”, por exemplo,
para substituir o Sol Vermelho. E o hino foi aprovado pelo grupo e
transferido para debate entre os deputados.
Curiosamente uma das
passagens que suscitou mais objecções foi essa que diz “Nós juramos por
ti Moçambique, nenhum tirano nos irá escravizar”. Alguns deputados
achavam que aquilo não devia estar ali. Porque, segundo eles, nunca
teríamos em Moçambique a ameaça de um tirano. Todos os países do mundo
podem sofrer essa eventualidade. Nós, não. Não imagino como se pode
sustentar essa certeza. Subsiste a ideia ingénua que nós, moçambicanos,
estamos, por qualquer razão divina, acima dos comuns mortais. Mas nós
somos humanos e existirão entre nós aqueles, que na ganância do mandar,
já são tiranos antes mesmo de conquistarem o Poder. Ainda bem, caros
amigos, que essa estrofe não foi retirada. Há muitos modos de ser
tirano. Há vários modo de ser escravo. E é bom que o nosso hino nos
encoraje a não aceitar nenhum forma de tirania ou de escravatura.
Segundo episódio – O não discurso de Samora
No
Quarto Congresso da Frelimo, em 1983, fui designado como responsável do
Gabinete de Imprensa. Nós, os jornalistas, ficávamos confinados a um
compartimento envidraçado, numa espécie de aquário suspenso sobre a
grande sala. Na altura, nós já produzíamos emissões de televisão para
além, é claro, da rádio e dos jornais. Logo no inicio dos trabalhos,
Samora Machel subiu ao pódio para usar da palavra. Trazia consigo o
Relatório do Comité Central que era, à maneira dos partidos
revolucionários, um documento volumoso. Assim que começou a ler, Samora
teve uma breve hesitação, colocou os papéis na bancada e falou de
improviso. Foi um improviso breve mas o que ele disse foi, para mim,
mais importante e mais duradouro que o extenso relatório do Comité
Central. Inclinado sobre o pódio, como se ganhasse a proximidade de uma
confidencia, Samora convertei a solene Sala de Congressos num espaço com
intimidade familiar. E falou do seu sentimento de estranheza ao ver-se
como um ex-guerrilheiro agora rodeado de facilidades, cercado pelas
obrigações protocolares e de segurança de um palácio presidencial. E
disse mais, falou daquilo que ele chamou das “balas doces do inimigo”.
Referia-se às formas mais subtis de sedução e de corrupção que, no seu
entender, eram mais perversas que as verdadeiras balas. E ele
interrogou-se se os seus companheiros estariam preparados realmente para
esse embate, se estavam preparados para enfrentar as balas de açúcar. A
sala estava suspensa naquela confidência. A rádio e a televisão
transmitiam em direto aquele desabafo do Presidente. E escutavam-se não
só as palavras mas os silêncios e a respiração inquieta do presidente.
Naquele momento, um oficial do protocolo entrou na Gabinete de Imprensa e
entregou-me um papel com uma instrução rabiscada que dizia: interrompam
imediatamente a transmissão. Aquilo foi, para mim, um balde de água
fria. Porque me parecia, como jornalista e como cidadão, que estava ali a
acontecer tinha um alcance didático que não poderia ser recuperado se
perdêssemos a transmissão. Mas havia naquele bilhete uma ordem que eu
não tinha modo de refutar. Ocorreu-me uma pequena manobra de diversão.
Eu queria apenas uns minutinhos adicionais. Quem sabe o Presidente não
usasse mais que esses minutos? E escrevi o seguinte nas costas no
bilhete: desculpe, não entendo bem a assinatura, não se importa de
identificar melhor, afinal é o Presidente quem está falar…. Dobrei muito
lentamente a folha e pedi ao mensageiro do protocolo que fosse de
volta. Aquele vai e vem deu-me tempo para que o presidente terminasse o
seu improviso em transmissão direta.
De toda a minha carreira de
onze anos de jornalismo talvez tenha sido este o momento maior. Porque
estava ali um dirigente de uma nação que se despia do seu estatuto
infalível e partilhava não uma certeza, mas a confissão de uma
insegurança, de um fragilidade. Estava ali não um líder revolucionário
discursando em voz alta, mas um homem dobrado pela angústia e murmurando
dúvidas sobre o quanto valera a pena toda a sua luta.
Durante um
intervalo desse mesmo congresso tive a oportunidade de me sentar com um
grupo de veteranos da luta de libertação nacional. E eles foram
relatando como saíram clandestinamente do país para se juntarem à luta
nacionalista. Alguns desses homens confessaram que o principal motivo da
sua fuga não era a libertação da pátria. O que os movia a sair de
Moçambique era poderem estudar. E quando, na Tanzania, receberam a
notícia que, em vez de estudar, iriam combater esses militantes foram
assaltados por dilacerantes dúvidas. Alguns pensaram em desertar e fugir
dos campos de treino. Foi isto que confessaram. E eu pensei que havia
mais coragem naquela confissão, do que em toda a sua arriscada odisseia.
Aquelas pequenas histórias humanizavam a narrativa solene e oficial que
apresenta a epopeia dos nacionalistas como um desfile de super-homens.
Afinal, o ninguém nasceu herói. Ele cresceu, teve duvidas, sentiu medo. A
bravura maior não está no modo como combateu aos outros. A grande
coragem está no combate interior, esse que fazemos para nos superar a
nós mesmos.
Falei-vos há pouco dessa proposta de hino chamada
Pátria de heróis que foi entoada como Pátria de Arroz. Lembro-me que, na
altura, até gostei do equívoco dos cantores, porque me vieram à memória
as palavras de Albert Camus quando recordava a Argélia onde ele nasceu e
dizia: “Pobre do país que precisa de heróis”.
Naquela altura
achei que talvez fosse preferível uma pátria de arroz a uma pátria de
heróis. A verdade é que a nossa epopeia nacional foi apropriada por um
discurso vazio de exaltação patrioteira.
O resultado é que as
nossas ruas e praças estão recheadas de nomes de heróis. A esses heróis,
porém, falta-lhes rosto, falta-lhe voz, falta-lhes vida. Herdámos uma
história heroica de heróis sem história. Só temos a História com H
maiúsculo. Faltam-nos as pequenas histórias, falta-nos os pequenos
episódios que seduzem a imaginação e sustentam a memória.
Caros amigos
Um
dia destes, um jovem funcionário propôs-me o pagamento de um suborno
para emitir um documento. Aquilo não correu bem porque ele, num certo
momento, reconheceu-me e recuou nos seus propósitos.
Para se redimir o jovem explicou-se da seguinte maneira:
– Sabe, senhor Mia eu gostava muito de ser uma pessoa honesta, mas falta-me o patrocínio.
Não
será exatamente o patrocínio que nos afasta da honestidade. O que nos
falta é criar uma narrativa que prove que a honestidade vale a pena.
Houve quem confundisse o combate contra a pobreza absoluta pelo combate
pela ganância absoluta. Sugeriram-nos que a auto estima pode ser
resolvida pela ostentação do luxo.
Uma certa narrativa quer ainda
provar que vale a pena mentir, que vale a pena roubar, e que vale a pena
tudo menos ser honesto e trabalhar. Aliás, a palavra “trabalho” suscita
fortíssima alergias. Pode-se ter negócios, pode-se ter projetos. Mas
ter um trabalho isso é que nunca. Que o trabalho leva muito tempo e,
além disso, dá muito trabalho. Mas, no fundo, todos sabemos: enriquecer
rápido e sem esforço só pode ser feito de uma maneira: roubando,
vigarizando, corrompendo e sendo corrompido. Não existe, no mundo,
inteiro, uma outra receita.
Preocupa-nos que os nossos estudantes
entrem para universidade com fraco desempenho académico. Pois eu acho
mais preocupante ainda que os nossos jovens cresçam sem referências
morais. Estamos empenhados em assuntos como o empreendedorismo como se
todos os nossos filhos estivessem destinados a serem empresários.
Ocupamos em cursos de liderança como se a próxima geração fosse toda
destinada a criar políticos e líderes. Não vejo muito interesse em
preparar os nossos filhos em serem simplesmente boas pessoas, bons
cidadãos do seu país, bons cidadãos do mundo.
Escrevi uma vez que a
maior desgraça de um país pobre é que, em vez de produzir riqueza, vai
produzindo ricos. Poderia hoje acrescentar que outro problema das nações
pobres é que, em vez de produzirem conhecimento, produzem doutores (até
eu agora já fui promovido..,) . Em vez de promover pesquisa, emitem
diplomas. Outra desgraça de uma nação pobre é o modelo único de sucesso
que vendem às novas gerações. E esse modelo está bem patente nos
vídeo-clips que passam na nossa televisão: um jovem rico e de maus
modos, rodeado de carros de luxo e de meninas fáceis, um jovem que pensa
que é americano, um jovem que odeia os pobres porque eles lhes fazem
lembrar a sua própria origem.
É preciso remar contra toda essa
corrente. É preciso mostrar que vale a pena ser honesto. É preciso criar
histórias em que o vencedor não é o mais poderoso. Histórias em que
quem foi escolhido não foi o mais arrogante mas o mais tolerante, aquele
que mais escuta os outros. Histórias em que o herói não é o
lambe-botas, nem o chico-esperto. Talvez essa histórias sejam o tal
patrocínio que faltou ao nosso jovem funcionário.
Tudo isto é
urgente e imperioso. Porque nós estamos na eminência de desacreditar de
nós mesmos. Todos nós já escutámos de alguém a seguinte desistência: não
vale a pena, nós somos assim. Nós somos cabritos à espera de ser
amarrados num qualquer pasto. Estamos a aprender a desqualificarmo-nos.
Estamos a replicar o racismo que outros inventaram para nos despromover
como um povo de qualidade moral inferior.
E vou terminar
partilhando um episódio real que foi vivido por colegas meus. Depois da
Independência, um programa de controlo dos caudais dos rios foi
instalado em Moçambique. Formulários foram distribuídos pelas estações
hidrológicas espalhadas pelo país. A guerra de desestabilização eclodiu e
esse projeto, como tantos outros, foi interrompido por mais de uma
dúzia de anos. Quando a Paz se reinstalou, em 1992, as autoridades
relançaram esse programa acreditando que, em todo o lado, era necessário
recomeçar do zero. Contudo, uma surpresa esperava a brigada que visitou
uma isolada estação hidrométrica no interior da Zambézia. O velho
guarda tinha-se mantido ativo e cumprira, com zelo diário, a sua missão
durante todos aqueles anos. Esgotados os formulários, ele passou a usar
as paredes da estação para registrar, a carvão, os dados hidrológicos. No
interior e exterior, as paredes estavam cobertas de anotações e a velha
casa parecia um imenso livro de pedra. Ao receber a brigada o velho
guarda estava à porta a estação, com orgulho de quem cumpriu dia após
dia: acabou-se o papel, disse ele, mas o meus dedos não acabaram. Este é
o meu livro. E apontou para a casa.
E esta é a história com que termino.
Por Mia Couto
Sugestão de Postagem da amiga Marisa Bello
Mantida a grafia original
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