Caio Fernando Abreu, autor de Ovelhas negras.
Caio
Fernando Abreu escreveu Ovelhas negras, seu nono livro, de 1995, ao
longo de trinta e três anos. Entre 1962 e 1995. Dos 14 anos aos 46 anos
de idade, em quase dois
terços de sua vida. Vinte e um anos
depois de sua morte, convidado por Marcelo Spomberg para ser o mediador
das sete mesas de debate do Festival Literário de Extrema (MG), em que
Caio F. foi o autor homenageado, resolvi procurar minha velha edição de
Ovelhas negras. Uma edição da Sulina, de Porto Alegre, que guarda um
carinhoso autógrafo de Caio. É o seu livro mais excêntrico: difícil
dizer onde fica seu ponto de apoio. Talvez também o mais enigmático.
Senti logo que nele encontraria um caminho fértil para esse retorno a
Caio que Marcelo Spomberg me propôs.
“Eram e são textos
marginais, bastardos, deserdados”, Caio F. admitiu na época do
lançamento. “Não sou do tipo escritor histérico que rasga e joga tudo
fora. Será falta de rigor?” Ainda bem que Caio, diante dessa dúvida,
sempre respondeu “não”. Não se trata de falta de rigor, mas de confiança
em sua escrita. De uma aposta na grandeza das pequenas coisas. Na
epígrafe de abertura de Ovelhas negras, tomada de A legião estrangeira,
de Clarice Lispector, ele afirma sua paixão pelo desprezível e pelo
incompleto. Nela, Clarice diz: “Por que publicar o que não presta?
Porque o que presta também não presta. Além do mais, o que obviamente
não presta sempre me interessou muito. Gosto do modo carinhoso do
inacabado, daquilo que desajeitadamente tenta um pequeno voo e cai sem
graça no chão”.
Ovelhas negras é, de fato, um livro instável,
imprevisível, mas por isso mesmo muito rico. Entre os 25 textos que o
compõem, um sempre me interessou de maneira especial: Lixo e purpurina,
fragmentos do diário que Caio F. escreveu em Londres, onde viveu,
durante o ano de 1974. Tinha 26 anos de idade. Vivia a triste
experiência do exílio político. Logo na abertura, ele anuncia: “De
vários fragmentos escritos em Londres em 1974 nasceu esse diário, em
parte verdadeiro, em parte ficção”. O escritor admite que pensou muito
antes de publicá-lo, porque “não parece pronto”. Mas foi justamente esse
aspecto vulnerável e inacabado que o levou a incluir seu diário inglês
em Ovelhas negras. Parece que Caio nunca duvidou do caráter incompleto
de toda escrita, da insuficiência que define a ficção, das limitações a
que todo escritor está sempre submetido. Não é fácil conviver com nossa
ignorância. Em uma nota em 2 de março, ele diz: “A única magia que
existe é estarmos vivos e não entendermos nada disso. A única magia que
existe é a nossa incompreensão”.
Escrever é uma pequena magia —
uma “magia modesta”, como definiu, certa vez, o argentino Adolfo Bioy
Casares. Modesta porque, ao contrário dos grandes magos, os escritores
não possuem dons especiais, nem travam diálogos com supostas forças
superiores, ou manipulam fórmulas encantadas. Só se escreve modestamente
— todo escritor escreve apenas com o que tem e com o que é. E ainda
assim, quando escreve, o escritor não compreende inteiramente o que faz.
Daí ser tão perigosa a vaidade, que pode levar um escritor a supor que
domina o que, na verdade, o domina. Homem inquieto e muito irônico, Caio
F. sempre duvidou de si mesmo e das próprias palavras.
No mesmo
dia 2 de março de 1974, ele anota ainda: “Chorar por tudo que se perdeu,
por tudo que apenas ameaçou e não chegou a ser, pelo que perdi de mim,
pelo ontem morto, pelo hoje sujo, pelo amanhã que não existe”.
Novamente: a consciência do fracasso, das coisas que ficam pela metade,
daquilo que podia ser, mas não se realizou. Consciência dolorosa, que
inferniza o escritor em sua viagem e que o acompanha até o ponto final.
Consciência do incompleto, sempre incompleto, que nem o ponto final é
capaz de resolver. Foi por saber disso que Caio não hesitou em reunir
seus textos inacabados, ou mesmo desprezados, em um livro. Neste Ovelhas
negras — ovelhas perdidas, esquisitas, marginais — que agora tenho nas
mãos.
Duas semanas depois, em 14 de março, ele anota: “A sensação
de estar afundando na areia movediça. No lodo”. Não se deve reduzir
esse sentimento de desagregação a um estado de espírito. A fragmentação,
ou mesmo dissolução, vai muito além dos aspectos psicológicos e
existenciais. Ela faz parte da condição do escritor. É claro, esse
contato direto com o fragmento retorna depois, com força, ao corpo de
quem escreve. Caio continua: “Minha aparência é péssima, a mente e o
corpo exaustos. Mas existe uma tranquilidade estranha. Não tenho mais
nada a perder”. Ao aceitar a condição precária da escrita, ao desistir
de lutar contra ela, o escritor (Caio F.) “cai em si” — e então pode se
sentir sereno. É claro: são muitos os escritores de vida metódica. Basta
pensar em Carlos Drummond, em seu gabinete do Ministério da Educação,
sempre asseado e impecável. Ou em Lygia Fagundes Telles, até hoje uma
dama de inegável nobreza, e que, mesmo assim, nunca deixou de entrar em
contato com o bárbaro e o feroz.
Trata Caio, enfim, da literatura
não só como uma magia modesta, mas como um estilo de luta — tão
exigente quanto o judô, ou o jiu-jitsu. Há um heroísmo no ato de
escrever, e por isso tendemos, tantas vezes, a mitificar os escritores.
No dia 7 de maio, Caio F. — bem menos pretensioso — anota em seu diário
inglês: “Pelo menos estou vivo. Em movimento, andando por aí, perdendo
ou ganhando, levando porrada, passando fome, tentando amar. ‘De cada
luta ou repouso me levantarei forte como um cavalo selvagem’, onde foi
que li isso? Sei: Clarice Lispector, meu Deus, foi em Perto do coração
selvagem”. A literatura inclui, portanto, e de modo necessário, alguma
esperança.
Nas últimas anotações de seu diário, feitas já durante
o voo de volta ao Brasil, Caio escreve: “Volta a pergunta maldita:
terei realmente escolhido certo? E o que é o certo? Digo que todo
caminho é caminho, porque nenhum caminho é caminho”. Refere-se, de forma
mais imediata, à decisão de retornar para casa; mas fala, de um modo
mais vasto, da escolha diária, e sempre renovada, a que um escritor se
submete. Uma pequena magia por dia: eis o que um escritor espera de si. A
magia aqui pode ser entendida, de modo mais realista e menos místico,
como uma transformação. As estrelas nunca estão no mesmo lugar. Nossos
pensamentos não param de se mover. A vida social é embate e luta. Por
que a literatura se pareceria com uma estátua?
JOSÉ CASTELLO
É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros. Vive em Curitiba (PR).
JORNAL RASCUNHO (Disponível em: http://rascunho.com.br/uma-magia-modesta/. Acesso em: 05 de novembro de 2017.)
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