sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Waack é vítima da fome insaciável das redes que exige sacrifício de figuras



Falando em público, Luís Roberto Barroso qualificou Joaquim Barbosa como "um negro de primeira linha". Desculpou-se, depois, pela óbvia conotação preconceituosa do diagnóstico —e, felizmente, segue no mundo dos vivos.

William Waack proferiu, em comentário privado, o mais antigo dos abomináveis gracejos racistas. A frase veio a público e ele desculpou-se —mas corre o risco de ser arremessado ao mundo dos mortos.

O minotauro da lenda alimentava-se de jovens virgens. A fome insaciável das Redes Sociais, minotauro pós-moderno, exige o sacrifício ritual de figuras públicas.

Um clamor de indignação legítima nasce da janela que se abriu para um abismo interior de Waack. O jornalista admirado expeliu lixo. Somos todos, de alguma forma, lixeiras de séculos de violência, exclusão e preconceito. As pessoas decentes estão indignadas pois enxergaram, em lugar inesperado, um sedimento profundo da história humana: o metal pesado, contaminante, do nosso desamor. Mas, se decentes realmente são, os indignados devem resistir à sedução do linchamento, outro metal pesado da tabela periódica da nossa barbárie.

O detentor do vídeo incriminatório guardou-o durante um ano inteiro, como quem protege um tesouro, antes de propiciar sua divulgação, um gesto derivado do cálculo, não da exasperação. As valiosas imagens e sons podem ter servido à chantagem ou ao comércio, antes de se prestarem à "cruzada da virtude" que está em curso.

No labirinto das Redes Sociais, o clamor de indignação legítima dissolve-se numa onda avassaladora de condenação terminal fabricada pela "guerrilha da informação". Waack precisa perecer pelo que diz e escreve em público: por suas opiniões políticas moderadas e suas matizadas interpretações históricas.

Troca-se a difícil tarefa de confrontar intelectualmente o "inimigo" por uma alternativa tão fácil quanto eficiente: suprimi-lo manipulando oportunisticamente o consenso civilizado de repúdio ao preconceito racial. Os hipócritas investem na decência dos decentes, em busca de uma finalidade indecente.

O gracejo idiota de Waack deu-se na hora do triunfo eleitoral de Trump, um fanfarrão sem escrúpulos, grosseiro, malcriado e preconceituoso. A figura que crismou os imigrantes mexicanos como estupradores substituía Obama, um líder íntegro, sofisticado, capaz de oferecer lições inesquecíveis de empatia humana.

"Coisa de preto", "coisa de branco"? A cor da pele nada tem a ver com isso, como Waack sabe perfeitamente. A frase emitida na esfera privada pode ser horrível (e é!), mas não equivale a uma sentença proferida na arena pública. Não se tem notícia de uma manifestação política racista ou um gesto de injúria racial do jornalista. Imolá-lo em cena aberta não nos limpa ou purifica —e só aplaca temporariamente a sede de sangue do minotauro virtual.

A URSS stalinista, a Alemanha nazista, a China maoísta, o Camboja de Pol Pot e a Cuba castrista estabeleceram o objetivo de criar o "homem novo". Os sistemas totalitários almejavam retificar não apenas o comportamento, mas a mente dos indivíduos, moldando-a segundo suas normas ideológicas. A escola, a propaganda, a prisão, a tortura e o campo de trabalhos forçados eram os instrumentos da pedagogia social.

Por sorte, todas essas tentativas fracassaram. Homens (e mulheres) "velhos", empapados de fraquezas e preconceitos, seguem constituindo as sociedades. São eles (nós) os alvos dos vigilantes das Redes Sociais, tão compreensivos com discursos políticos odientos, nem sempre severos com atos criminosos, mas implacáveis com desvios privados puramente verbais.

Já aprendemos algo com o triste episódio de Waack. Não precisamos condená-lo ao submundo, empobrecendo ainda mais nosso paupérrimo debate público, apenas para alimentar o minotauro.

DEMÉTRIO MAGNOLI (FOLHA ONLINE)

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