Falando em público, Luís Roberto Barroso qualificou
Joaquim Barbosa como
"um negro de primeira linha". Desculpou-se, depois, pela óbvia
conotação preconceituosa do diagnóstico —e, felizmente, segue no mundo dos
vivos.
William Waack proferiu, em comentário privado, o
mais antigo dos abomináveis gracejos racistas. A frase veio a público e
ele desculpou-se —mas
corre o risco de ser arremessado ao mundo dos mortos.
O minotauro da lenda alimentava-se de jovens
virgens. A fome insaciável das Redes Sociais, minotauro pós-moderno, exige o
sacrifício ritual de figuras públicas.
Um clamor de indignação legítima nasce da janela
que se abriu para um abismo interior de Waack. O jornalista admirado expeliu
lixo. Somos todos, de alguma forma, lixeiras de séculos de violência, exclusão
e preconceito. As pessoas decentes estão indignadas pois enxergaram, em lugar
inesperado, um sedimento profundo da história humana: o metal pesado, contaminante,
do nosso desamor. Mas, se decentes realmente são, os indignados devem resistir
à sedução do linchamento, outro metal pesado da tabela periódica da nossa
barbárie.
O detentor do vídeo incriminatório guardou-o
durante um ano inteiro, como quem protege um tesouro, antes de propiciar sua
divulgação, um gesto derivado do cálculo, não da exasperação. As valiosas
imagens e sons podem ter servido à chantagem ou ao comércio, antes de se
prestarem à "cruzada da virtude" que está em curso.
No labirinto das Redes Sociais, o clamor de
indignação legítima dissolve-se numa onda avassaladora de condenação terminal
fabricada pela "guerrilha da informação". Waack precisa perecer pelo
que diz e escreve em público: por suas opiniões políticas moderadas e suas
matizadas interpretações históricas.
Troca-se a difícil tarefa de confrontar
intelectualmente o "inimigo" por uma alternativa tão fácil quanto
eficiente: suprimi-lo manipulando oportunisticamente o consenso civilizado de
repúdio ao preconceito racial. Os hipócritas investem na decência dos decentes,
em busca de uma finalidade indecente.
O gracejo idiota de Waack deu-se na hora do triunfo
eleitoral de Trump, um fanfarrão sem escrúpulos, grosseiro, malcriado e
preconceituoso. A figura que crismou os imigrantes mexicanos como estupradores
substituía Obama, um líder íntegro, sofisticado, capaz de oferecer lições
inesquecíveis de empatia humana.
"Coisa de preto", "coisa de
branco"? A cor da pele nada tem a ver com isso, como Waack sabe
perfeitamente. A frase emitida na esfera privada pode ser horrível (e é!), mas
não equivale a uma sentença proferida na arena pública. Não se tem notícia de
uma manifestação política racista ou um gesto de injúria racial do jornalista.
Imolá-lo em cena aberta não nos limpa ou purifica —e só aplaca temporariamente
a sede de sangue do minotauro virtual.
A URSS stalinista, a Alemanha nazista, a China
maoísta, o Camboja de Pol Pot e a Cuba castrista estabeleceram o objetivo de
criar o "homem novo". Os sistemas totalitários almejavam retificar
não apenas o comportamento, mas a mente dos indivíduos, moldando-a segundo suas
normas ideológicas. A escola, a propaganda, a prisão, a tortura e o campo de
trabalhos forçados eram os instrumentos da pedagogia social.
Por sorte, todas essas tentativas fracassaram.
Homens (e mulheres) "velhos", empapados de fraquezas e preconceitos,
seguem constituindo as sociedades. São eles (nós) os alvos dos vigilantes das
Redes Sociais, tão compreensivos com discursos políticos odientos, nem sempre
severos com atos criminosos, mas implacáveis com desvios privados puramente
verbais.
Já aprendemos algo com o triste episódio
de Waack. Não precisamos condená-lo ao submundo, empobrecendo ainda
mais nosso paupérrimo debate público, apenas para alimentar o minotauro.
DEMÉTRIO MAGNOLI (FOLHA ONLINE)
(Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2017/11/1934599-waack-e-vitima-da-fome-insaciavel-das-redes-que-exige-sacrificio-de-figuras.shtml.
Acesso em: 14 de novembro de 2017.)
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