O saite Literary Hub fez um teste com seus leitores, via
Twitter. A idéia lançada era: Existe alguma palavra do idioma inglês que, assim
que a vemos, lembra de imediato um autor?
O autor da matéria, Kaveh Akbar, argumenta que não pode
ouvir a palavra “purple” (=roxo) sem lembrar de Prince, por causa da canção
“Purple Rain”.
A questão lançada tem uma certa sutileza, porque ele não
está perguntando palavras inventadas por autores, o que seria muito mais fácil.
“Jabberwocky” é uma palavra inventada por Lewis Carroll, “cyberspace” foi
inventada por William Gibson, “riverrun” por James Joyce e assim por diante.
O que ele pergunta é o caso de palavras que já eram
termos comuns da língia inglesa, mas que foram usadas de forma tão marcante por
um autor que acabaram se associando a ele.
Os leitores trouxeram twitters com muitas sugestões, a
maioria de autores que desconheço, mas tem alguns que não há como negar.
Quem pode negar, por exemplo, que “Howl” ficou para
sempre associada ao famoso poema de Allen Ginsberg? O substantivo uivo e o
verbo uivar continuam aparecendo normalmente em um milhão de textos, mas é como
se grudado a eles viessem sempre, como um balão de gás amarrado no parachoque
de um carro, a barba e os óculos do poeta beat do Greenwich Village.
Ele dá exemplos recentes: “handmaid” (=aia, criada) ficou
associado a Margaret Atwood depois do romance/série de TV The Handmaid’s Tale.
Alguém lembrou que mesmo uma coisa de uso prático como a
escala Fahrenheit passou a lembrar Ray Bradbury por causa do romance Fahrenheit 451 – a tal ponto que Michael
Moore intitulou um documentário seu Fahrenheit
11/9, em alusão ao mundo de Bradbury, não ao da medição térmica.
O saite lembra que a palavra “tyger” ficou associada a
William Blake pelo seu famoso poema “Tyger, tyger, burning bright / in the
forest of the night...” Com o detalhe de que isso só ocorre na forma arcaica da
grafia, com “Y”.
Também na lista aparecem “flâneur” (a cara de Charles
Baudelaire), “inferno” (a cara de Dante – note-se que o uso corriqueiro em
inglês é de “hell”, sendo “inferno” uma palavra de cunho latino usada em casos
excepcionais), “solitude” (a cara de Garcia Márquez, e o tradutor Gregory
Rabassa já explicou por que preferiu este termo a “loneliness”).
De minha parte, nunca deixou de me espantar o título do
famoso conto de Edgar Allan Poe sobre a carta furtada: “The Purloined Letter”.
Em décadas de leituras em inglês não me lembro de ter visto esse verbo, “to
purloin”, usado por quem quer que fosse. É como se Poe o tivesse inventado.
E em português?
A primeira palavra-pregada-a-um-autor que me ocorre é a
inevitável “nonada”, que já era corrente no idioma mas Guimarães Rosa tornou
inequivocamente sua.
Igualmente corrente era a palavra “armorial”, mas como
substantivo (“livro ou códice onde se reúnem reproduções de brasões e armas
heráldicas”). Neste sentido, existe até em inglês (vejo de vez em quando em
livros por aí). Ariano Suassuna deu-lhe cunho de adjetivo e tornou-se
indissociável dele.
A palavra “banguê” pode ser de uso corrente na zona
canavieira, mas no caso de leitores de qualquer outra parte a sensação que
temos é de que foi José Lins do Rego que a inventou no título de um livro
famoso. O mesmo argumento pode valer para “bagaceira” e José Américo de
Almeida.
São palavras meio raras, e essa raridade torna mais fácil
a sua anexação a um uso famoso. Porque palavras mais comuns, como “pedra”
poderiam ser associadas por leitores diferentes a Drummond, a João Cabral, ao
próprio Ariano... Palavras a que diferentes autores deram usos marcantes em
cada caso, e que acabaram não se fixando em nenhum deles.
Vale para nomes próprios, também, nomes de lugares que já
existiam antes de um autor se apossar para sempre do seu topônimo. Eu, por
exemplo, sempre pensei que “Pasárgada” fosse uma invenção de Manuel Bandeira,
mesmo tendo visto repetidas declarações dele de que colheu o nome dos livros de
História.
Fico imaginando se para outros leitores as palavras “veranico”,
“amanuense”, “bugre”, “catavento”, “escarro”, “senzala”, têm para todos os
leitores as mesmas referências literárias imediatas que têm para mim.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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