Torquato, Caetano e Capinan
“Caetano havia chegado a Teresina para um show. Estava muito triste.
Retornava pela primeira vez à cidade onde havia nascido um de seus
principais parceiros na Tropicália e seu grande amigo, o poeta Torquato
Neto, meu primo, que havia se suicidado em 1972”, escreveu o jornalista,
poeta e escritor piauense Paulo José Cunha.
Foi a partir desse momento que começou a ser escrita a história das entrelinhas de Cajuína, música de Caetano Veloso gravada em 1979 para o disco Cinema Transcendental. Oito versos de um xote um tanto melancólico que se questiona sobre a efemeridade da vida, de belezas e mistérios.
A canção começou a ser composta por Caetano quando chegou a Teresina (PI) com a turnê Muito e
recebeu no hotel a visita de Dr. Heli Nunes, o pai de Torquato. Aquela
era a primeira vez que o encontrava após o trágico fim do amigo.
“Senti uma dureza de ânimo dentro de mim. Me senti um tanto amargo e
triste mas pouco sentimental”, relembrou Caetano, que não havia chorado
no momento em que recebeu a notícia da morte súbita de Torquato. Foi
apenas ao se encontrar com Dr. Heli, anos depois do ocorrido, que sua
“dureza amarga se desfez”, como traduziu o próprio Caetano.
Naquele momento de reencontro, Caetano derramou as lágrimas guardadas
e foi consolado com grande ternura pelo pai de seu amigo. Dr. Heli o
levou até sua casa e lá ficaram a sós (já que Dona Maria Salomé, mãe de
Torquato, estava hospitalizada). Ele conta que não trocaram muitas
palavras, mas contemplaram juntos as inúmeras fotografias de Torquato
expostas pelas paredes da casa.
Dr. Heli, como se desejasse relembrar a beleza da vida, deu ao amigo
de seu filho uma rosa-menina colhida diretamente do quintal; e também
serviu cajuína, como se quisesse adocicar aquele instante. Caetano
continuava a derramar lágrimas, mas não mais de tristeza ou amargura.
“Era um sentimento terno e bom, amoroso, dirigido a Dr. Heli e a
Torquato, à vida. Mas era intenso demais e eu chorei”, simplificou
Caetano.
E foi no dia seguinte, quando pegou a estrada, que Caetano escreveu Cajuína, expressando em palavras cantadas a complexidade e simplicidade de momentos que despertam sentimentos quase intraduzíveis.
O Anjo Torto
Em 1967, o Tropicalismo se firmava como movimento cultural e tinha
como grande letrista Torquato Neto. Ele assinou importantes canções,
como Geleia Real, Louvação, Marginalia 2, Mamãe Coragem e Deus vos Salve esta Casa Santa,
fazendo parcerias com Gilberto Gil, Caetano Veloso, Edu Lobo e Jards
Macalé. No período pré-Tropicalista, também conheceu Chico Buarque de
Holanda, de quem se tornou grande amigo.
Mas aqueles eram tempos difíceis para sonhadores. Fazer arte
significava um ato de bravura e a censura tentava calar Torquato, que,
além de letrista e poeta, também era jornalista, tendo assinado por
muitos anos a coluna Música Popular, do jornal O Sol, e também a polêmica Geleia Real,
publicada no Última Hora. Com a repressão, Torquato se afastou de tudo e
todos e chegou a se internar voluntariamente por conta de sua
instabilidade mental agravada.
Torquato Neto, conhecido como o Anjo Torto da Tropicália, cometeu
suicídio no dia 10 de novembro de 1972, um dia após seu aniversário de
28 anos. Foi ainda na madrugada, após seus convidados terem deixado sua
casa no Rio de Janeiro (RJ), que decidiu abrir as torneiras de gás de
seu banheiro. Lá foi encontrado morto ao amanhecer, asfixiado.
Os jornais da época relataram que as últimas anotações encontradas em seu caderno de espiral traziam frases como Pra mim chega e O amor é imperdoável, esta última atribuída a Caetano Veloso. No livro Torquato Neto: uma poética de estilhaços, o escrito Paulo Andrade transcreveu a nota de suicídio assinada pelo poeta:
“FICO. Não consigo acompanhar a marcha do progresso de minha mulher ou sou uma grande múmia que só pensa em múmias mesmo vivas e lindas feito a minha mulher na sua louca disparada para o progresso. Tenho saudades como os cariocas do tempo em que eu me sentia e achava que era um guia de cegos. Depois começaram a ver, e, enquanto me contorcia de dores, o cacho de banana caía. De modo Q FICO sossegado por aqui mesmo enquanto dure. Ana é uma SANTA de véu e grinalda com um palhaço empacotado ao lado. Não acredito em amor de múmias, e é por isso que eu FICO e vou ficando por causa deste amor. Pra mim chega! Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar”.
Quanto a seu pai, Dr. Heli, faleceu em 2010, aos 92 anos de idade.
Seu sepultamento foi realizado por Thiago Silva de Araújo Nunes, único
filho do poeta piauiense com Ana Maria, esposa de Torquato citada na
carta de despedida.
Confira aqui a
íntegra do relato de Caetano sobre a composição e abaixo o trecho de
sua participação no Programa Livre, onde também fala sobre a história
por trás da música. E, por fim, a interpretação de Cajuína, em 1982 e 2012:
Fernanda Mendonça
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