Pode parecer estranho
tentar estabelecer uma relação entre dois universos aparentemente tão
distantes. Afinal, onde poderia se encontrar o nexo entre a amizade e os
direitos humanos? Creio que o estranhamento inicial pode ser dissipado se
lembrarmos que a amizade é uma paixão fundamental que conserva juntos os seres
humanos. Dessa forma, a amizade apresenta-se como uma das dimensões do amor.
Aliás, os gregos chamavam a amizade de philia, ou seja, uma espécie de
sentimento de simpatia e de afeição mútua entre dois indivíduos. Para eles, a
amizade não se confundia com duas outras modalidades de expressão do desejo de
fusão interpessoal, a saber, o amor parental (ágape) e o amor erótico (eros).
De fato, o amor parental
é um sentimento espontâneo que liga de forma incondicional nossas vidas a vida
dos nossos filhos. Como tal, ele independe do próprio valor de seu objeto.
Amamos nossos filhos não pelo o que eles valem – e por vezes, para nosso
desespero, eles não valem muita coisa – mas por sua própria natureza, isto é,
pelo simples fato de que eles integram nossa própria existência. Daí o caráter
abnegado e altruísta desta modalidade de afeto. Não exigimos retribuição
alguma. Satisfazemo-nos, por vezes, com um simples sorriso.
A amizade também não se
confunde com o amor erótico, pois independe de toda sexualidade. A propósito,
em contraste com o amor parental que se caracteriza por uma fusão espontânea, o
amor erótico vem a ser exatamente o desejo de obter essa fusão com uma outra
pessoa. Logo, ao contrário do amor parental, o amor erótico não é a fusão
propriamente dita, mas a busca desesperada por ela. E como só buscamos aquilo
que nos falta, podemos concluir como faz Platão no seu Banquete, que o amor
erótico caracteriza-se, antes de tudo, por sua imperfeição.
Certamente todos lembram
aqui da estória que Platão nos conta sobre o nascimento de Eros, o deus do
amor. Quando Afrodite nasceu, os deuses do Olimpo decidiram celebrar o
acontecimento oferecendo um banquete. Entretanto, não convidaram Penúria, deusa
da pobreza, que no decorrer do evento, sentou-se junto à porta para mendigar os
sobejos. Nesse momento, Engenho, deus da abundância, embriagado pelo néctar que
havia bebido, saiu para o jardim e adormeceu. Penúria aproveitou o ensejo,
deitou-se com ele concebeu Eros. Tal foi o nascimento do amor, fruto do
encontro entre a pobreza e a abundância.
O que Platão pretende
demonstrar com esta estória é o caráter ambivalente e irrealizável do amor
erótico: abundante, por um lado, pobre e miserável por outro, pois cada vez que
aliviamos o desejo sexual, caímos no vazio e passamos a desejar novamente,
enveredando assim numa busca incessante que nos angustia. Daí a tensão trágica
do amor erótico tão bem retratada no Banquete: “Por natureza, o amor não é
mortal, nem imortal, mas, num só dia, tão depressa se encontra pleno de vigor e
belo, vivendo na abundância, como tão depressa morre (...) O que adquire
escapa-lhe sem cessar, de maneira que nunca se encontra, nem na pobreza, nem na
opulência”.
A estória contada por
Platão pode nos ajudar a compreender porque a amizade difere tanto do amor
parental quanto do amor erótico. Em contraste com o primeiro, o amor fraterno
não é espontâneo, mas resulta de uma decisão (o que me faz lembrar a famosa
frase de Aristóteles tão citada nos blogs de adolescentes da internet: “É o
destino que nos dá a nossa família, mas somos nós que escolhemos os amigos”).
No mais, enquanto o amor
parental se caracteriza pela desigualdade natural existente entre os pais e os
filhos, o amor fraterno é o amor entre iguais. Da mesma forma, diferentemente
do amor erótico que busca exclusividade, a amizade deseja estabelecer uma fusão
com todos os seres humanos. Em seguida, podemos dizer que, contrariando ao
mesmo tempo o amor parental e o amor erótico, o amor fraterno não é fusão, mas
repartição, pois, como já havia observado Montaigne, “na verdadeira amizade
dou-me ao meu amigo mais do que dele quero para mim”. Por fim, das três
modalidades de amor, a amizade é aquela que mais revela a dimensão humana: de alguma
forma, compartilhamos com os animais o afeto pelos descendentes e os impulsos
sexuais. Contudo, a amizade é tipicamente humana, já que ela resulta de uma
atitude voluntária e reflexiva.
Podemos definir a
amizade como o sentimento de respeito, responsabilidade e cuidado por qualquer
outro ser humano. Logo, a verdadeira amizade transmite os limites da
individualidade; trata-se de um afeto pela humanidade como um todo. Ora, é
exatamente esta pretensão de universalidade que liga a amizade aos direitos humanos.
Afinal, o que pode servir de fundamento para a idéia de direitos humanos senão
o fato de que todos os seres humanos são iguais e devem ser tratados com
respeito? E a raiz da palavra respeito, convém lembrar, é respicere, isto é,
“olhar para”. Respeitamos alguém quando contemplamos o outro como congênere;
quando deixamos surgir, no nosso interior, a imagem dele ao mesmo tempo como um
diferente e um igual.
Em certa ocasião escrevi
um livro sobre a dignidade humana que, de certa forma, até hoje me persegue. Lá
procurei mostrar que não existe uma maneira de se provar que todos os seres
humanos são igualmente dignos. Nesse sentido, acredito que a dignidade humana é
uma crença que não pode ser justificada plenamente. Entretanto, não se trata de
uma crença arbitrária. Afinal, toda ética começa por um princípio de
reconhecimento. Daí a simpatia que nutro com relação às idéias de um filósofo
judeu, Emmanuel Levinas, que afirma ser o rosto do outro o elemento que permite
o reconhecimento de minha própria identidade. Ou nas próprias palavras de
Levinas: “É apenas quando abordo o Outro que assisto a mim mesmo”. Através do
rosto, percebo, de imediato, o caráter sagrado e inviolável de cada ser humano.
Como a amizade, os
direitos humanos precisam ser cultivados, pois, se por um lado, é bem verdade
que tais direitos passaram a se constituir em exigências que constrangem cada
vez mais a própria maneira como nos percebemos enquanto cidadãos e mesmo como
membros da espécie humana, por outro, não existe qualquer garantia de que este
importante patrimônio moral da humanidade permaneça intocado.
Todos os dias recebemos
de diversas partes do mundo, notícias sobre graves violações e ameaças aos
direitos humanos. No nosso país, parte da mídia continua a incutir a idéia de
que os militantes dos direitos humanos não passam de defensores de bandidos.
Daí a importância da educação em direitos humanos, concebida não como a simples
introdução de um conteúdo temático sobre esses direitos nos programas escolares
ou universitários, mas essencialmente como um meio capaz de proporcionar o
respeito pelas pessoas. Só assim conseguiremos construir uma verdadeira cultura
dos direitos humanos, dessa feita em sentido antropológico mesmo, isto é, como
um conjunto e valores e concepções sobre a dignidade dos seres humanos.
Gostaria de lembrar
também que da mesma forma como acontece com os direitos humanos, a amizade é
tende a ser percebida de maneira enganosa e equivocada. Em primeiro lugar
porque numa sociedade como a nossa, centrada no valor da utilidade, amigos
parecem ser simplesmente aqueles que nos proporcionam vantagens recíprocas.
Ora, no século XVI, Etienne de La Boétie já advertia: Entre os maus, quando se
juntam, há uma conspiração, não sociedade. Não se apóiam mutuamente, mas
temem-se mutuamente. Não são amigos, são cúmplices.
Por outro lado, vivemos
uma época que hipervaloriza a interioridade dos indivíduos em detrimento das
formas de relacionamento voltadas para o espaço público. Isso nos impele de
perceber a amizade de forma limitada, como ligação a uma só pessoa ou um grupo
de pessoas e não à humanidade como um todo. Assim, esquecemos algo fundamental:
que um mundo sem espaço para a amizade, concebida como reconhecimento de que
somos, todos, irmãos, não merece, como bem dizia Espinoza, “o nome de cidade,
mas antes o de solidão”.
Devemos, portanto,
ampliar a nossa visão da tradicional da amizade vislumbrando-a da maneira mais
ampla possível, isto é, como possibilidade de construção de uma fraternidade
mundial. Conforme bem escreve Fernando Savater, a maior vantagem que podemos obter
de nossos semelhantes não é a posse de mais coisas, mas a cumplicidade e o
afeto de mais seres livres. Quem sabe assim, conseguiremos, ao mesmo tempo,
humanizar o mundo e tornarmo-nos verdadeiramente humanos. E talvez alguém aqui
se pergunte: mas, afinal, para que serve isso. Por que devemos tratar os outros
com respeito? O mesmo Savater responde: Não serve para nada. Afinal, só os
servos servem e não estamos falando aqui de escravos, mas de seres livres.
Seres que compreendem que a liberdade não serve e não gosta de ser servida.
Eduardo Ramalho
Rabenhorst
(Sinólogo, Mestre em
História, Doutor em Filosofia... e etc, etc )
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