segunda-feira, 1 de maio de 2017

Para Belchior, com amor

Belchior teve a coragem de dar-um-perdido, sair de fininho no meio da festa, largar o palco e deixar o microfone falando sozinho. Ninguém é obrigado a passar a vida toda rodando dentro do moedor-de-carne do show business. Tem gente que gosta e se dá bem. Tem gente que suporta sem grandes prejuízos. Tem gente que se submete porque não tem opção. E tem gente que pensa: “Eu não sou obrigado a ficar fazendo isso a vida toda.”
O primeiro disco dele, hoje pouco conhecido, era cheio de experiências meio concretistas, típicas de quem ainda bambeia entre o livro e o palco. Alucinação (1976) foi o seu primeiro disco a atingir o público, com um impacto que nunca se dissipou.
Os jovens de hoje que o escutam pela primeira vez sentem o mesmo “peso” que a minha geração sentiu há quarenta anos, porque o disco, embora seja um disco tão característico daquela época, vale para qualquer uma, pois fala de sentimentos cíclicos, de situações humanas recorrentes.
E acima de tudo é um disco que bate no ouvinte, mais do que pelos seus temas imediatos, pela surpresa daquela voz improvável (hoje mais ainda!), daqueles versos que vão fundo, daquela verdade pessoal que abre o coração na mesa e com isto ganha o coração coletivo.
Belchior evocava João Cabral (“A Palo Seco”), alfinetava os baianos, trançava numa mesma referência Edgar Allan Poe, Humberto Teixeira e Roman Jakobsson (“raven / never”), os Beatles e Zé Limeira. Era a paleta de referências de uma época em que muitas hierarquias se nivelaram e muitos cânones desceram da torre de marfim para a calçada. Um momento raro em que o Mercado, o único deus onipresente, soube ganhar dinheiro com isso.
Hoje, é praticamente zero a possibilidade de grande sucesso de um tipo de música como a que ele, com menos de 30 anos, fez tocar nas rádios de todo o Brasil. O mercado musical do Brasil encolheu. Ficou menor do que Belchior.
A notícia da morte do poeta me pegou no meio da leitura de Para Belchior com amor (Fortaleza: Miragem Editorial/Expressão Gráfica, 2017), coletânea organizada por Ricardo Kelmer, meu parceiro constante de mesas redondas e de cervejas de formatos variados no Encontro da Nova Consciência, em Campina Grande.
Kelmer reuniu contos, crônicas e pequenos ensaios assinados por Xico Sá, Gero Camilo, Ethel de Paula, Raymundo Netto, Carmélia Aragão, Ricardo Guilherme, Joan Edesson de Oliveira, José Américo Bezerra Saraiva, Ana Karla Dubiela, Cleudene Aragão, Ricardo Kelmer, Roberto Maciel, Thiago Arrais e Jeff Peixoto – catorze cearenses que revisitam suas canções preferidas na obra do bardo de Sobral, lembram episódios, mostram gratidão pelos versos que marcaram suas vidas.
O século 20 foi o Século da Canção Popular. Nunca essa forma de arte teve tanto poder quanto nos últimos cem anos. Nenhuma outra expressão artística atingiu, nesse período, tanta gente, e de forma tão variada, e com influências tão duradouras.  Primeiro, através da indústria fonográfica, depois através do rádio e da TV, depois pela indústria gigantesca dos grandes shows ao vivo, e finalmente pela Internet. Tornou-se uma experiência artística das massas (e frequentemente com alto nível estético), massas com as quais a ópera e a música erudita jamais sonharam.
Em muitos momentos desse processo, na Europa, nas Américas, no Brasil, sucesso popular e novidade estética decolaram juntas para brilhar à vista de todos. A geração de Belchior foi uma das que conseguiram essa façanha em nosso país. Façanha difícil de se repetir na indústria musical de hoje, com sua aposta pesada na fórmula banal e no clichê. Não importa. O que entrou na memória coletiva não sai mais. Os diamantes são eternos.

Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo 

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