segunda-feira, 22 de maio de 2017

O Mote Flutuante no repente cubano

Poucas coisas são tão universais na poesia popular das Américas quanto o esquema de rima da décima. A boa e velha décima dos cantadores de viola nordestinos não é só deles. É de toda a América hispânica.
Já vi exemplos de canções no formato de décimas na poesia da Argentina, do Chile, do Peru, do Uruguai, de todo canto.
O exemplo que sempre cito é a canção “Volver a los 17”, gravada por Milton Nascimento e Mercedes Sosa.
Gravação original:
Para que fique bem claro: a décima que falo é a estrofe de dez versos onde o primeiro rima com o quarto e o quinto, o segundo com o terceiro, o sexto e o sétimo com o décimo, e o oitavo com o nono. Ou, de acordo com a notação tradicional, onde cada letra representa a posição de uma das rimas: A B B A A C C D D C.
É a décima do Século de Ouro da poesia espanhola (entre os séculos 16 e 17). É a mesma décima popularizada no Brasil por Gregório de Matos (1636-1696), o “Boca do Inferno” da Bahia.
Entre nós, a décima serve entre outras coisas para glosar motes, que são versos fornecidos pelo público. O mais comum é que o mote seja de 1 ou de 2 linhas, que irão constituir o final da décima (a linha 10 ou as linhas 9 e 10, respectivamente). Ou seja: o público sugere um final para a décima, e a gente faz os versos restantes, concluindo com o mote que o público forneceu.
Em Cuba os poetas chamam o mote de “pie forzado”, que quer dizer “pé forçado”, ou “pé obrigatório”. Tanto lá como aqui, “pé” é sinônimo de “linha”. Nossos cantadores cantam o “8 pés a quadrão” e o “10 pés a quadrão”, que são estrofes, respectivamente, de oito e de dez linhas.
“Pie forzado” = “linha obrigatória”. É o mote: a linha (ou linhas) que o público fornece, e que o cantador é forçado a incluir no seu improviso.
Vi recentemente uma menção a uma variante curiosa, algo que já tinha me ocorrido usar. Eles o chamam de “pie forzado móvil”, e que seria entre nós algo como “mote flutuante”, sem posição fixa, ou pelo menos, sem a mesma posição o tempo todo.
Suponhamos que o público dá um mote de uma linha: “nas quebradas do Sertão”. Ambos os contendores terão que incluir essa linha em suas décimas improvisadas, mas cada vez numa posição mais à frente.
O primeiro cantador usa o mote como a primeira linha, e diz:
Nas quebradas do sertão
eu vejo tanto vaqueiro
montar cavalo ligeiro
pra perseguir barbatão;
vejo vaqueiro e patrão
chorando a perda do gado
quando o poço está secado
pelo sol que tudo mata,
e a vida se torna ingrata
pro dono e pro empregado.
O segundo deve fazer sua décima colocando o “mote flutuante” na segunda linha:
Mas eu vejo a alegria
nas quebradas do Sertão
quando pipoca o trovão
por cima da serrania;
cai a chuva, quente ou fria,
mesmo assim abençoada
enquanto o “pai da coalhada”
estremece a serra inteira,
e o rio faz cachoeira
pela barranca inclinada.
O primeiro cantador, agora, tem que seguir a ordem e usar o mote flutuante como a terceira linha:
Todo tipo de paisagem
se vê, porque todos são,
nas quebradas do Sertão
essências da nossa imagem.
Nem ilusão nem miragem;
o Sertão tudo comporta
desde a Natureza morta
até a paisagem viva
e uma gente que é altiva
com a seca batendo à porta.
E assim por diante, até que a linha do mote tenha percorrido todas as dez posições, “descendo” ao longo da estrofe.
No saite do repentista Alexis Díaz Pimenta, colhi um depoimento datado de 2012 do qual destaco este trecho (“controversia”, entre os repentistas cubanos, é a nossa “peleja” ou “desafio”):
Normalmente, las competencias de repentismo en Cuba están organizadas en función de las controversias, la variante más conocida y popular de la improvisación poética de la isla. No obstante, en todas las competencias hay también pies forzados, esa modalidad en que el poeta está obligado a improvisar sus décimas y terminarlas con versos ajenos. Las controversias suelen tener una extensión de 10 ó 14 décimas (5 ó 7 décimas por repentista) y al final de cada controversia cada poeta canta 1 ó 2 pies forzados. Esas son las reglas generales. (…)
Tanto en el Primer como en el Segundo Campeonato Mundial de Pies Forzados una de las grandes sorpresas del evento, fue la controversia con pie forzado móvil, un tipo de controversia que, creemos, también llegó para quedarse. Expliquémosla.
Se selecciona un pie forzado “móvil” de la lista general. Una vez escogido el pie forzado, cada poeta debe improvisar una décima usando el pie en un verso distinto, en grado descendiente, del 1 al 10. Es decir, el poeta A utiliza el pie forzado en el verso 1; el poeta B, en el verso 2; el A, en el 3; el B en el 4; el A en el 5; el B, en el 6; el A en el 7; el B en el 8; el A en el 9; y el B en el 10.
El esquema de la controversia quedaría así:
Poeta A........pie forzado.......... verso 1
Poeta B …....pie forzado......... verso 2
Poeta A …....pie forzado..........verso 3
Poeta B........pie forzado..........verso 4
Poeta A …....pie forzado..........verso 5
Poeta B …....pie forzado..........verso 6
Poeta A …....pie forzado..........verso 7
Poeta B …....pie forzado..........verso 8
Poeta A …..pie forzado............verso 9
Poeta B …..pie forzado............verso 10
O “mote flutuante” poderia se constituir numa modalidade interessante, se não para a cantoria de viola, pelo menos para as “mesas de glosas” ou “rodas de glosas” que atualmente andam tão em voga no Sertão. O desafio podia ser feito entre dois improvisadores, com um usando o mote nas linhas 1, 3, 5, 7 e 9, e o outro, intercaladamente, nas linhas 2, 4, 6, 8 e 10.  Ou então poderíamos ter, quando há uma mesa com dez glosadores, o que não é raro, o mote passando de um em um e percorrendo a décima até o fim.
É um tipo de inovação que, para mim, está totalmente de acordo com o espírito da cantoria. Nossos motes variam desde o mote de uma linha apenas, no final, até duas linhas (a 9 e a 10) ou então, num modelo aliás muito usado no Rio Grande do Norte, o mote de duas linhas que aparecem nas posições 4 e 10.
O fato do mote se deslocar ao longo da estrofe requer um cuidado adicional: o mote tem que ser um tipo de frase que possa aparecer no começo, no meio e no fim de uma frase maior, para que os improvisadores possam incluí-lo no seu discurso sem forçar a barra. O exemplo que escolhi, “nas quebradas do sertão”, é isto: uma expressão sugestiva, meio que completa em si mesma, um segmento meio isolado, que não exige necessariamente um preâmbulo nem um complemento.
 
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo 

Nenhum comentário: