Diante
da turbulência contemporânea, muitos se perguntam: “O que fazer?”
A carta que
inspira essas meditações não foi escrita, na verdade, a um suicida, mas à mãe
de um suicida. Foi enviada em 8 de maio de 1932 pelo escritor Hermann Hesse a
uma leitora anônima. Eu a encontro nas Cartas escolhidas, de
Hesse, em edição de 1999 da Editorial Sudamericana, de Buenos Aires. Começo
pelo alemão Hermann Hesse (1877-1972), um escritor que marcou profundamente minha
juventude. Que a inspirou, mas também a desestruturou.
Fui um
adolescente bastante deprimido. Embora nunca tenha pensado em suicídio, e essa
ideia até me horrorizasse — como até hoje me horroriza —, via-me, quase sempre,
em situações-limite, sem solução, oprimido por um mundo que era muito maior do
que eu e que me engolia. Uma de minhas salvações foi descobrir, um dia, em uma
papelaria de Copacabana, por acaso, um exemplar de O
lobo da estepe, romance que Hesse publicou em 1927 e que
comprei movido apenas pelo título que oscilava entre o sedutor e o assustador.
Devorei-o. Depois
li Demian, de 1917, li
também Sidarta, de 1922, e
cheguei enfim ao Jogo das contas de vidro,
de 1943, romance imenso em que, admito, eu me perdi. Larguei-o pelo meio, mas a
escrita de Hesse continuou a me assombrar e, como um tênue e diáfano facho de
luz em meio a minha escuridão, a me conduzir. No fim do século 20, já de
cabelos grisalhos, enfim, descobri as cartas de Hesse. Estima-se que o escritor
alemão recebeu, e respondeu, mais de 30 mil cartas ao longo de toda a vida. Foi
um homem aberto ao diálogo, e isso já se expõe escandalosamente em sua
literatura.
Nos tempos tensos
e desanimadores em que vivemos, lembro-me, de repente, das cartas de Hesse e a
elas recorro mais uma vez. Por acaso, sempre por acaso, esbarro na carta à mãe
de um suicida. O escritor atribui o sofrimento do jovem suicida não à falta de
liberdade e à opressão, mas, ao contrário, ao excesso de liberdade. Em outras
palavras: à ausência de limites, características, ele acredita, que marcam o
seu tempo. Provavelmente marcam também o nosso tempo. É uma questão complexa,
pois a ausência de limites, em vez de expandir o espaço da liberdade, anula
qualquer chance de liberdade. E a liberdade — sobretudo em nosso sofrido Brasil
— está novamente sob grande risco. Mais que nunca, precisamos defendê-la com
coragem.
“Penso em seu
filho com simpatia e como o maior respeito diante de seu ato”, diz Hesse,
“ainda que em si não deva se tornar um ato exemplar”. Hesse não defende o
suicídio, mas também não o condena: tenta compreendê-lo. Eis o ponto que mais
me interessa na breve carta: a tentativa de entender uma situação adversa, de
não fugir dela, de não disfarçá-la, de não abandoná-la sob a pecha da loucura,
ou da devassidão. De não abrandar o horror. Tudo aquilo que hoje, um tanto sem
combalidos, muitas vezes evitamos.
Agora mesmo, pelo
celular, recebi a mensagem de uma amiga que diz assim: “O Brasil está muito
complicado. Prefiro não tomar posição agora e simplesmente não pensar. Prefiro
deixar para mais tarde”. A atitude de minha amiga, aparentemente sensata,
configura, na verdade, uma fuga. O medo de olhar o horror nos olhos. Foi
provavelmente para fugir do insuportável que o jovem suicida alemão optou pelo
suicídio. De seu ato, podemos arrancar uma mensagem tardia, mas talvez útil: de
nada adianta olhar para o lado, fingir que não se vê, esquivar-se. Tudo o que
ele conseguiu foi perder a vida: foi perder a si mesmo.
Em fevereiro de
1933, Hermann Hesse recebe uma carta de um estudante de Potsdam, a capital de
Brandemburgo. A carta lhe parece confusa; o escritor não chega a entender o que
o rapaz procura e nem por que ele lhe escreve. Eis outro tema dos dias de hoje:
a confusão. A realidade parece ultrapassar nossos mecanismos de digestão
mental. É para escapar da confusão que minha amiga, imitando o Bartleby de
Herman Melville, me diz: “Prefiro deixar para mais tarde”. Ou, nas palavras do
personagem de Melville: “É melhor não”. Não há mais tarde, tudo o que temos é o
agora. Só dele podemos partir. “Recebi sua carta mas, lamentavelmente, não me
ficam claras nem sua situação, nem sua pergunta”, começa Hesse em sua resposta.
“Só consigo concluir que você duvida de si mesmo, porque se impõe exigências
particularmente elevadas.” Eis outro ponto chave: a importância de começar
sempre pelas pequenas coisas.
Diante da
turbulência contemporânea, muitas pessoas se perguntam: “O que fazer?”. Muitas
se perdem em longas divagações inacessíveis, em longas interrogações inúteis,
em longos sofrimentos, que apenas as massacram. Contudo, existem sempre
pequenas coisas, postas bem diante de nosso nariz, que podemos não só enxergar,
como também fazer. Ou pelo menos tentar fazer. O estudante de Potsdam
provavelmente deseja coisas demais — e, ao fazer isso, não consegue dar um nome
a seu desejo.
Tantos de nós,
sufocados por um presente insuportável, preferem não tomar nada a sério. O
cinismo como solução (falsa solução) é o tema da Carta
a um jovem, que Hesse assina no verão de 1932. “Chegou sua
carta. Ela se parece com muitas outras que recebo. Evidencia uma típica posição
de sua geração: cinismo por falta de responsabilidade, desespero motivado pela
anarquia.” Hesse oferece seu diagnóstico: “Não há em você a vontade de servir”.
Diante da realidade dolorosa, repulsiva, muitas vezes optamos pelo descaso, e
até pelo descaramento, como se nada nos dissesse respeito. Como disse ainda
minha amiga em sua triste mensagem: “O Brasil é problema dos outros. Vou cuidar
da minha vida”.
Hesse toca em um
ponto delicado, mas decisivo: o desespero. De fato, andamos todos um tanto
aflitos, mas isso é diferente de entregar-se ao desalento. Diz ainda: “Se não
podes tomar nada a sério, pelo menos tente tomar a sério a si mesmo”. Desistir
de si, e mesmo assim continuar a viver, eis a mais arrepiante forma de
suicídio. Trata-se de um suicídio moral. “Sua vida tem tanto sentido quanto o
que você for capaz de dar a si mesmo”, diz Hesse. Sustentar nossos projetos.
Agarrar-se ao que temos de melhor. Apesar de tudo, não desistir de acreditar
nos outros. Construir um sentido para si mesmo e dele fazer seu caminho.
JOSÉ CASTELLO (Jornal Rascunho)
É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar,
entre outros livros. Vive em Curitiba (PR).
(Disponível em: http://rascunho.com.br/carta-a-um-suicida/.
Acesso em: 03 maio 2017.)
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