A definição
de “pós-verdade”, escolhida como palavra do ano pelo Oxford
Dictionaries, resume bem os últimos anos, ao menos no Ocidente.
Até meados de novembro de
2016, se alguém me falasse em “pós-verdade”, talvez a minha referência mental
imediata fosse ao trabalho realizado pelo Ministério da Verdade na Inglaterra
(já nem tão) distópica criada por George Orwell em seu romance 1984. O referido
ministério era responsável por promover ações de propaganda para a manutenção
do partido no poder e, talvez mais sintomaticamente para os tempos em que
vivemos, rever e re-escrever a história para que ela sempre esteja alinhada aos
interesses presentes do poder. Para mim, “pós-verdade” era isso: transformar o
passado a partir dos alinhamentos ideológicos do presente. No entanto, com a
nomeação do termo como a palavra do ano pelos lexicógrafos do Oxford Dictionaries, me vi
obrigado a rever uma série de posições.
Conforme a definição,
“pós-verdade” relaciona-se ou denota circunstâncias nas quais os fatos
objetivos são menos importantes em moldar a opinião pública do que apelos
emocionais e crenças individuais. Ao ler tal definição, fiquei duplamente
surpreso; primeiramente, porque ela consegue, in a nutshell, resumir bem os
últimos anos, ao menos no Ocidente. Quem frequenta as redes sociais como eu não
consegue mais ignorar não só a polarização maniqueísta pela qual a sociedade
está passando mas, também (e, quiçá, como sua causa e consequência ao mesmo
tempo) essa tentativa voraz de transformar vivências e opiniões pessoais em experiência
universal e senso comum. A pós-verdade surge para dar nome a essa prática
humana assustadora não para entendê-la e eventualmente domesticá-la mas, sim,
para validá-la. A pós-verdade é meta-pós-verdade em sua essência.
Estamos perdendo a habilidade
de refletir criticamente sobre a realidade que nos circunda e essa tentativa
constante de transformar ontologia em epistemologia de forma direta é sua
consequência mais maligna especialmente porque ela vem acompanhada de um
complexo de deus. Quando alguém diz que algo que fere a existência de outros
não deve ser desrespeitado porque é apenas a sua opinião, no fundo o que há é o
que vemos no início do Livro de Gênesis, onde a palavra transforma-se em carne,
em existência, em ação que não pode ser questionada e muito menos
desrespeitada. No panteão judaico-cristão, onde há apenas a presença de um
único deus, isso não representa qualquer problema ou mesmo conflito de
interesses (a não ser entre ele e seus subordinados) mas qualquer incursão num
panteão politeísta serve para ilustrar o que vemos hoje: cada um de nós que se
apropria da pós-verdade transforma-se em um deus que quer ser superior aos
demais deuses formados da mesma argila. Somos todos Titãs que desconhecemos a
existência dos Olimpianos.
Na língua japonesa, o kanji 青
pode referir-se ao mesmo tempo às cores azul e verde. O contexto faz com que
saibamos a qual delas o ideograma aponta em determinado momento. A aceitação da
polissemia faz com que haja harmonia em seu uso. Será que conseguiremos chegar em um
estágio onde superemos as pós-verdades e consigamos voltar a conviver com
dúvidas?
Eduardo Marks de Marques é doutor em Letras, Professor da Universidade Federal de Pelotas
Home > Blog Marcia Tiburi > No campo das pós-verdades; ou
quando o verde também é azul
Disponível
em: http://revistacult.uol.com.br/home/2017/01/no-campo-das-pos-verdades-ou-quando-o-verde-tambem-e-azul/.
Acesso em: 23 janeiro 2017.)
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