quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

No campo das pós-verdades; ou quando o verde também é azul



A definição de “pós-verdade”,  escolhida como palavra do ano pelo Oxford Dictionaries, resume bem os últimos anos, ao menos no Ocidente.




Pinocchio, de Igor Makarevich (Foto: Reprodução)

Até meados de novembro de 2016, se alguém me falasse em “pós-verdade”, talvez a minha referência mental imediata fosse ao trabalho realizado pelo Ministério da Verdade na Inglaterra (já nem tão) distópica criada por George Orwell em seu romance 1984. O referido ministério era responsável por promover ações de propaganda para a manutenção do partido no poder e, talvez mais sintomaticamente para os tempos em que vivemos, rever e re-escrever a história para que ela sempre esteja alinhada aos interesses presentes do poder. Para mim, “pós-verdade” era isso: transformar o passado a partir dos alinhamentos ideológicos do presente. No entanto, com a nomeação do termo como a palavra do ano pelos lexicógrafos do Oxford Dictionaries, me vi obrigado a rever uma série de posições.

Conforme a definição, “pós-verdade” relaciona-se ou denota circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos importantes em moldar a opinião pública do que apelos emocionais e crenças individuais. Ao ler tal definição, fiquei duplamente surpreso; primeiramente, porque ela consegue, in a nutshell, resumir bem os últimos anos, ao menos no Ocidente. Quem frequenta as redes sociais como eu não consegue mais ignorar não só a polarização maniqueísta pela qual a sociedade está passando mas, também (e, quiçá, como sua causa e consequência ao mesmo tempo) essa tentativa voraz de transformar vivências e opiniões pessoais em experiência universal e senso comum. A pós-verdade surge para dar nome a essa prática humana assustadora não para entendê-la e eventualmente domesticá-la mas, sim, para validá-la. A pós-verdade é meta-pós-verdade em sua essência.

Estamos perdendo a habilidade de refletir criticamente sobre a realidade que nos circunda e essa tentativa constante de transformar ontologia em epistemologia de forma direta é sua consequência mais maligna especialmente porque ela vem acompanhada de um complexo de deus. Quando alguém diz que algo que fere a existência de outros não deve ser desrespeitado porque é apenas a sua opinião, no fundo o que há é o que vemos no início do Livro de Gênesis, onde a palavra transforma-se em carne, em existência, em ação que não pode ser questionada e muito menos desrespeitada. No panteão judaico-cristão, onde há apenas a presença de um único deus, isso não representa qualquer problema ou mesmo conflito de interesses (a não ser entre ele e seus subordinados) mas qualquer incursão num panteão politeísta serve para ilustrar o que vemos hoje: cada um de nós que se apropria da pós-verdade transforma-se em um deus que quer ser superior aos demais deuses formados da mesma argila. Somos todos Titãs que desconhecemos a existência dos Olimpianos.

Na língua japonesa, o kanji 青 pode referir-se ao mesmo tempo às cores azul e verde. O contexto faz com que saibamos a qual delas o ideograma aponta em determinado momento. A aceitação da polissemia faz com que haja harmonia em seu uso. Será que conseguiremos chegar em um estágio onde superemos as pós-verdades e consigamos voltar a conviver com dúvidas?


Eduardo Marks de Marques é doutor em Letras, Professor da Universidade Federal de Pelotas

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