Quase trinta anos depois, releio o trecho de um livro que ajudou a salvar minha vida
No verão de 1991, passei alguns dias com meus pais na praia de Itanhaém, no litoral sul de São Paulo. Ali, naquelas mesmas areias e pedras, quatro séculos antes, havia perambulado o Padre José de Anchieta, um dos primeiros poetas do Brasil e hoje santo da Igreja. Existe em Itanhaém uma rocha em formato de leito que o povo chama de "Cama do Anchieta", por ser o lugar em que o jesuíta se deitava para ler, meditar e orar. Também há as ruínas do primeiro colégio jesuíta de Itanhaém, que muitas vezes visitei na infância e na adolescência.
Naquelas manhãs de verão de 26 anos atrás levei para ler um alentado
volume de 750 páginas e capa vermelha: "Anna Karênina", o monumental
romance do gênio russo Liev Tolstói. Não é exatamente a leitura que se espera de um verão na praia, mas eu já era um cara meio estranho na época.
Tolstói sempre foi um dos meus escritores do coração, e não estarei
exagerando se dissesse que as suas histórias ajudaram a me salvar a
vida. Lembro-me de certa manhã em que acordei particularmente
deprimido e desencantado com o mundo, mesmo estando ao lado de quem
amava. Carreguei o meu livro até algumas cadeiras que se encontravam na
beira da praia e abri o grosso volume no capítulo em que Constantino
Liêvin, um dos heróis do romance, visitava o irmão Nicolau, radical
político e doente de tuberculose. Combalido pela doença, entre fartas doses de vodca, Nicolau mostra toda a sua revolta contra a estrutura da realidade:
"— Bem sabes que o capital oprime o trabalhador. Entre nós, os
operários e os camponeses suportam todo o peso do trabalho, e as coisas
estão feitas de tal maneira que por mais que trabalhem não conseguem
passar de bestas de carga. Todos os benefícios, tudo que permitiria ao
trabalhador melhorar a sua condição, ter descanso e por conseguinte
tempo para instruir-se, os capitalistas lhes roubam."
Ateu e comunista, descobri que aquele homem agonizante e digno de compaixão pensava exatamente como eu. Ele também odiava o capitalismo e a exploração! Apesar
de ter todos os confortos e facilidades que meus pais não haviam tido, o
jovem que eu era queria revolucionar a sociedade exatamente como o
pobre Nicolau Liêvin. Algumas páginas adiante, naquela mesma praia que Anchieta percorrera, eu leria, tomado por grande comoção, a cena da morte do radical político, com a força narrativa que só o velho Tolstói possuía.
"Nós não explicamos os clássicos, eles é que nos explicam", dizia o professor José Monir Nasser. Quase
trinta anos depois, livre do radicalismo político e do niilismo
espiritual, leio as mesmas passagens de Tolstói como uma advertência
para o nosso futuro. Eu não
sabia nem podia saber no verão de 1991, mas ideologia daquele personagem
é a mesma que conduziria nosso país à devastação.
Releio o velho livro. Volto a me sentir naquela praia, olhando as areias que Anchieta pisou — e rezo por nosso país.
Paulo Briguet
Folha de Londrina
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