Fala-se
muito da solidão do escritor, e ela é, de fato, uma solidão radical
Avançando um
pouco nas lembranças de Kundera, podemos concluir que todo leitor é, ele
também, um criador. Todo leitor é, de certo modo, ainda que não tenha escrito
uma única linha, um escritor também. Não escreve com uma caneta, ou com um
computador; escreve com a cabeça. Se você é incapaz de imaginar a história que
lê, se não conseguir transportá-la para seu interior, simplesmente não
conseguirá ler. A leitura é, portanto, uma aventura a dois. Podemos dizer mais:
a literatura é, ela também, uma experiência a dois. Uma experiência
compartilhada. Até avançar mais um pouco: a literatura é uma experiência
amorosa.
Fala-se muito da
solidão do escritor, e ela é, de fato, uma solidão radical. Debruçado sobre
seus originais por meses, anos a fio, o escritor precisa romper com o mundo
externo para, através das palavras, encontrar uma nova via de acesso a este
mesmo mundo. Quando enfim entrega seus originais ao editor, essa solidão
diminui um pouco porque, enfim, será lido por alguém. Mas não é essa leitura
técnica, “de especialista”, que lhe interessa. Um escritor só se torna de fato
escritor quando suas palavras são devoradas pelo leitor anônimo. Não só
devoradas, mas divididas com ele.
Eu, por exemplo,
quando li pela primeira vez A metamorfose, de Kafka,
aos treze anos de idade, identifiquei-me de tal modo com Gregor Samsa que só
conseguia vê-lo com minhas próprias feições. Já reli A
metamorfose muitas
vezes desde então, mas essa sensação de espelhamento nunca se apagou. Posso
afirmar, (mal) imitando Flaubert: “Eu sou Gregor Samsa”. Só que Flaubert falava
desde a posição do autor, enquanto eu sou apenas um leitor. Apenas? Sem minha
visão íntima de Samsa, sem as milhares de visões possíveis de Samsa produzidas
pelos milhares de leitores da novela em todo mundo, o personagem de Kafka
simplesmente não existiria.
Participo, com
frequência, de júris literários — essa tarefa algo insensata que me obriga a
dizer qual livro é superior a outro e por quê. Nas reuniões dos jurados, é
comum ouvir participantes se desculparem porque, de tal modo se envolveram com
um livro, que — lamentam-se — não conseguiram se afastar de uma “leitura
pessoal”. É o que chamo de leitura sentimental — aquela que é feita com os
nervos e com fantasia, mais do que com o intelecto e a razão. Toda leitura, a
rigor, é sentimental. Mesmos os mestres universitários, que nas reuniões literárias
se armam de argumentos teóricos para defender seus livros preferidos, não
conseguem, no fundo, dela se afastar.
E isso por quê?
Porque, muito além de qualquer intermediação teórica, ou técnica, a leitura de
um livro transcorre, antes de tudo, em nosso interior. Ali onde a imaginação
reina — e não adianta escorraçá-la para a cozinha das imperfeições porque ela
sempre volta para a sala principal. Nessas reuniões de jurados, muitas vezes os
argumentos ostentados por um deles são muito mais ricos e reluzentes do que os
próprios livros. Nenhuma “grande argumentação”, contudo, anula aquela leitura
secreta que o jurado tenta esconder como se fosse “menor”. Toda leitura é
sempre apaixonada porque ninguém lê sem o recurso da imaginação, e a imaginação
é sempre pessoal, secreta e sentimental.
Tenho muitas e
graves restrições à educação que recebi nos tempos de escola. Mas uma delas me
enriqueceu de maneira especial: o exercício que os professores chamavam de
“leitura silenciosa”. Trata-se, a rigor, de uma redundância: toda leitura,
mesmo aquela em voz alta, guarda um aspecto silencioso e oculto. Mais do que o
que se possa dizer sobre uma narrativa (e os mestres, certamente, poderão dizer
muitas coisas impressionantes), interessa aquilo que não se pode dizer e que,
apesar disso, está ali e, mais do que isso ainda, é o próprio cimento da
leitura, ou tudo desaba. O jogador de hóquei que inspirou da leitura que Milan
Kundera fez na adolescência de O castelo se tornou, à sua revelia, um elemento
essencial da narrativa kafkiana. Ao emprestar sua face a K., ele ajudou o
pequeno Milan a reconstruir, dentro de si, o livro que lia. Essa reconstrução
interior é, a rigor, a própria leitura.
Livros fechados
simplesmente não existem, não passam de um amontoado de folhas de papel. Livros
só existem — afirmou um dia Augusto Roa Bastos, numa definição que estou sempre
a repetir para nunca me esquecer — dentro da cabeça do leitor. Mesmo a cabeça
do escritor não é tão importante assim, o leitor vem sempre à sua frente.
Permitam-me um exemplo pessoal. Acabo de lançar um livro,Dentro de mim ninguém entra,
que escrevi pensando, ou tentando pensar, no público infantojuvenil. Primeira
leitora de minha narrativa, uma amiga querida que é também uma prestigiada
crítica literária, não hesitou em me dizer: “as crianças não vão entender nada
do que você escreveu”. Temo que, provavelmente, minha amiga esteja certa.
Tentei fazer uma coisa, e fiz outra. Mas na literatura, e também na vida, não é
quase sempre assim?
O importante
nessa observação sincera de minha amiga é a constatação de que o que pensei
enquanto escrevia meu livro não tem a menor importância. Ele só terá
importância — só existirá — quando encontrar leitores que possam digeri-lo,
isto é, que consigam pensá-lo, ou imaginá-lo. Leitores que possam decodificar
aquele amontoado de letras e transformá-lo em imagens interiores. Então, minha
história já não estará mais nas páginas do livro, mas na cabeça de meus
leitores. E nenhum escritor consegue adivinhar o tipo de leitor que chegará a
digerir o que escreveu. Só uma primeira leitura — a leitura de minha amiga —
começa a emprestar uma face ao livro e aos personagens que o habitam. Só na
cabeça desse primeiro leitor a história começará, de fato, a fazer algum
sentido.
Uma vez publicado
(uma vez dado a público) nenhum livro pertence mais a seu autor. Você foi
apenas um instrumento, que agora pode ser descartado. Tudo o que resta de você
é um nome: uma assinatura. Ela pode despertar o sentimento de nobreza, ou, ao
contrário, de descrédito, mas também ela é irrelevante diante do que se passa
nos interiores secretos de cada leitor. Os leitores, sim, deveriam assinar os
livros, e não os escritores.
JOSÉ CASTELLO
É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar,
entre outros livros. Vive em Curitiba (PR).
(Disponível em: http://rascunho.com.br/a-supremacia-do-leitor/.
Acesso em: 30 janeiro 2017.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário