segunda-feira, 9 de novembro de 2015

A escuta como instrumento acolhedor

João Villacorta, psicólogo e coordenador do Cercca

Escolher ser ouvinte dos problemas dos outros não é uma tarefa das mais fáceis, porém há quem a faça. O criador da psicanálise, Sigmund Freud, usa o repertório pessoal como exemplo para tentar explicar esse tipo de escolha. “Quem, como eu, invoca os mais maléficos e mal domados demônios que habitam o peito humano, com eles travando combate, deve estar preparado para não sair ileso dessa luta (…). Aquilo por que mais intensamente anseiam em suas fantasias é justamente aquilo de que fogem quando lhes é apresentado pela realidade”, disse o médico neurologista em seu texto O mal estar da civilização, em 1929.

Os profissionais interlocutores são psicólogos, psicanalistas e terapeutas das mais diversas áreas. No tratamento, por exemplo, de crianças e adolescentes que sofreram abuso sexual, o profissional de psicologia lida com cada etapa diferente no processo da vítima. Às vezes é o que recebe a denúncia, percebe uma possível vítima de violência, apura os fatos e trata as feridas internas. Todos escutam as histórias, mas cada um as recebe de um jeito. Cada um enxerga com o olho que tem. Ou seja, uns enxergam uma vítima, outros veem um paciente ou um cliente. A sociedade? Sente pena, sempre.

“Acho que uma coisa é importante ser dita: não é um martírio ouvir essas crianças. Até porque não são todas, e nem a maioria, que chegam aqui chorando ou traumatizadas. Muitos nem entendem direito o que aconteceu com elas”, comenta João Villacorta, coordenador do Centro de Referência para o Cuidado de Crianças, Adolescentes e suas famílias em situação de violência (Cercca), unidade mantida pela Prefeitura do Recife. Ainda segundo o psicólogo, muitas vezes quem dramatiza a violência sexual contra crianças e adolescentes é a sociedade e não as vítimas. “Estigmatizam demais essas crianças, têm pena. Não era pra ser assim, elas não precisam absorver esse universo simbólico que colocam sobre elas e os problemas delas”, completa.

Segundo uma pesquisa de três professoras do Department of Counseling and Special Education at Youngstown State University (Departamento de Aconselhamento e Educação Especial da Universidade Estadual de Youngstown) – Kenneth L. Miller, Marianne K. Dove e Susan M. Miller – publicada em outubro de 2007, jovens de minorias (gays, lésbicas, bissexuais) sofrem maiores taxas de abuso sexual do que os demais. Essa informação influencia em outro estigma que a sociedade emprega a crianças vítimas de violência sexual. “Uma vez, um garoto de 9 anos veio aqui na clínica e a primeira coisa que ele me perguntou – antes mesmo de me dizer seu nome – foi: tio, eu vou ser frango? Ele tinha sido estuprado pelo padrasto e sua única aflição era se ele viraria gay depois do que aconteceu”, conta Villacorta. O que os outros vão achar às vezes dói mais do que a violência sofrida. Muitas vezes o que traumatiza não é o episódio, mas sim a repercussão dele.
“Portanto, é realmente verdade que, num certo sentido, todo fenômeno psicológico é um fenômeno sociológico, que o mental identifica-se com o social. Mas, num outro sentido, tudo se inverte: a prova do social, esta, só pode ser mental; dito de outro modo, jamais podemos estar certos de ter atingido o sentido e a função de uma instituição, se não somos capazes de reviver sua incidência numa consciência individual”. (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 24).
Dentre as ações dos profissionais de saúde para o atendimento e proteção da criança vítima de violência sexual, destaca-se o acolhimento e a abordagem que é feita pelo mesmo, fundamental para diminuir as consequências negativas imediatas e de longo prazo, causadas pela violência. Esses especialistas, principalmente os psicólogos, não conseguem monitorar todas as pessoas que circundam aquela criança, então eles procuram ser um porto seguro, pois não sabem com quem ela lida.

No entanto há alguns desafios nessa abordagem, e um deles é envolver-se sem gerar mais violência. “Fazer com que aquele episódio não marque o tempo psíquico da criança ou adolescente, que não seja a única referencia de relacionamento com os outros e com consigo, é outro grande desafio”, ressalta o psicólogo.

Acolher é, portanto, o grande papel dos profissionais que lidam com as vítimas e seus familiares, contribuindo para a quebra do ciclo de violência e para melhoria da qualidade de vida dessas pessoas. Mas como toda função, a de ouvir e tratar essas histórias e vítimas vem com um grande desafio: saber separar o profissional do pessoal. Como mostra o vídeo a seguir:

Daniela Maia

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