Dias atrás, jovens brasileiros escreveram sobre “A persistência da
violência contra a mulher na sociedade brasileira”, tema da redação do
ENEM/2015. O assunto é dos mais importantes no contexto da naturalização
da violência contra as mulheres. Essa violência que se tornou uma
constante cultural e que é assunto de todos. Não há no Brasil mulher que
não tenha sofrido violência, que não tenha alguma mulher na família ou
não conheça quem tenha sofrido violência. Não há quem não seja ou não
conheça um sujeito ativo da violência contra as mulheres.
Na mesma prova, jovens do Brasil todo responderam questões de filosofia envolvendo filósofos como Hobbes e Nietzsche.
Entre esses nomes, Simone de Beauvoir causou espanto a alguns.
Políticos fascistas e oportunistas (os mesmos de sempre e alguns novos
que se reúnem ao coro que cospe no rosto infantil da democracia
brasileira) aproveitaram o momento para destilar seu veneno ideológico
fazendo moções contra Beauvoir (como os vereadores de Campinas!) ou
falando asneiras vergonhosas na imprensa em geral – imprensa, aliás, que
lhes dá todo apoio, da qual são, em muitos sentidos, os donos. Aqui não
vou citar nomes, porque, evidentemente, tudo o que querem é também
ocupar os nossos espaços. Esses políticos oportunistas sabem que é
preciso administrar a ignorância do povo, com a qual lucram. Sabem que é
preciso aparecer o tempo todo. O povo que concorda com eles, ou está
com o pescoço preso às patas da ignorância administrada, ou, tendo luzes
para ver mais longe, opta pela má fé mesmo. (Lembro de uma pessoa que
era muito próxima a mim, uma pessoa muito bem formada academicamente,
dizendo sobre um dos personagens mais fascistóides da política
espetacularizada de nossa época: “X um cara legal”.)
O machismo estrutural é análogo ao fascismo, ambos fundados na ode à
ignorância. O machismo exacerbado e espetacularizado (esse que grita
contra as mulheres como gritam os fascistas contra quem eles odeiam) é a
continuação do machismo estrutural. A violência simbólica e física
contra as mulheres tem tudo a ver com isso. Ela está autorizada na
cultura da desfaçatez machista cujos sacerdotes atuais são os
administradores da ignorância, que espargem em sua cusparada ideológica a
naturalização da violência.
Um político carioca que bateu em sua mulher há alguns anos,
tornando-se mais um caso de polícia “esquecido” nos armários do Estado,
veio a público nesses dias com um discurso curioso a compor o grande
coro da naturalização:
“Eu cometi um erro. Eu traí minha mulher. Você imagina a
dificuldade e o calor dessa discussão. Associar isso a um ato de
violência doméstica, de um comportamento violento, isso em hipótese
alguma eu posso admitir. Porque isso não é minha atitude, eu não tenho
qualquer comportamento parecido com o que prevê a lei Maria da Penha”.
O discurso da naturalização no texto acima citado separa
estrategicamente o “erro” (que qualquer bom menino ou aspirante a cargo
público pode cometer) da “violência doméstica”, do “comportamento
violento”. Reduzir seu ato, confessado, de evidente violência, a um mero
erro, é uma bela estratégia discursiva quando se trata de convencer a
opinião pública de que, na verdade, não se fez um grande mal. Grande
parte da opinião pública provavelmente vai concordar porque a violência
contra as mulheres foi naturalizada a tal ponto que muitas das próprias
mulheres violentadas reduzem a violência sofrida à vergonha de terem
sido espancadas e retiram sua reclamação e sua voz da cena.
A naturalização é o texto. Desfaçatez, o subtexto.
Questionar isso tudo, não se deixar levar por naturalizações, eis o desafio do momento.
Márcia Tiburi
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