“Os dicionários definem a hipálage como um expediente
retórico segundo o qual uma palavra ocupa numa frase o lugar que convém
logicamente a outra que com ela mantém um vínculo semântico e gramatical. Por
exemplo: ao falar, em Os Lus. X, 2,
em ‘abundantes mesas de altos manjares’, Camões quer dizer, retoricamente,
‘abundantes manjares de altas mesas’. Quando fala em ‘apetite necrófago da
mosca’, Augusto dos Anjos, no poema ‘Cismas do destino’, parte II, quer dizer
que a mosca é que é necrófaga, e não o apetite.
“A hipálage é um processo psíquico, como a
sinestesia. A sinestesia é a correspondência entre sentidos ou sensações
diferentes, com ‘música doce’, por exemplo, em que a sensação acústica —
música — se associa a uma sensação gustativa —
doce. É por sinestesia que falamos em ‘voz grossa’ ou que atribuímos ideia de
coisa ‘gorda’ a uma palavra como ‘maluma’, ou damos cores (verbocromia) a
determinados sons, como o negrume ou u (fúnubre, túmulo, catacumba, urubu), e a
clareza ao a (claro, raro, preclaro...). A hipálage, no entanto, é mais
complexa que a correspondência sinestésica de sensações, e não raro diz
respeito à sintaxe e não apenas à semântica. É por hipálage que dizemos que o
sapato não entra no pé (na verdade, é o pé que não entra no sapato). Também por
hipálage, a moça que engordou diz que determinado vestido não cabe mais nela
(na verdade, é ela que não cabe mais no vestido).
“Não é apenas o deslocamento de um nome ou
de um verbo que produz a hipálage; a permuta de casos e de funções sintáticas
também pode caracterizá-la. Assim, uma expressão aparentemente errada, como
‘dar a luz a uma criança’ (por ‘dar à luz uma criança’) pode ser adequadamente
justificada como uma hipálage popular. Tanto faz, portanto, dizer que o bebê
foi dado à luz, quanto dizer que a luz foi dada ao bebê... A preferência que as
gramáticas dão a uma das expressões (‘dar à luz um bebê’) não justifica a
condenação da outra (‘dar a luz um bebê’).
“Há exemplos ‘carnavalescos’ de hipálage na
sintaxe popular, observáveis até mesmo na fala de pessoas cultas. Quando diz
que ‘meu carro furou o pneu’, o falante não quer dizer que seu carro tenha
realmente furado o próprio pneu... Quando dizemos que ‘Pedro quebrou o braço ao
cair’, não estamos querendo dizer que Pedro foi o autor da própria fratura...
Quando se diz que ‘o tanque vazou o óleo todo’, não se quer dizer que foi o
tanque o autor da façanha... Outros exemplos: Cafu fez três cirurgias (foi o
médico quem as fez). O jogador operou o septo nasal (foi o médico dele que
operou).
“Embora já se tenha falado nessas
construções sintáticas em trabalhos lingüísticos sobre topicalização (como o
livro de Eunice Pontes, Sujeito: da
sintaxe ao discurso. São Paulo: Ática/INL, 1986) não me consta que exista
algum estudo específico de psicolingüística exclusivamente sobre a hipálage.
“É pena.”
(CARVALHO,
José Augusto. Uma palavra no lugar de
outra — a hipálage. In: _____. Problemas e curiosidades da língua
portuguesa. Brasília: Thesaurus, 1. ed., 2014, pp.40-1.)
Sugestão de postagem do amigo Adauto Neto
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