— E QUE
tal umas iscas de fígado à lisboeta?
— Ih,
rapaz, adoro!
— E
coração de boi?
— Você
deixando uma noite em vinha-d’alhos fica divino!
— E uma
paçoquinha de carne sêca?
— Nem me
fale! Quem inventou carne sêca está no céu, sem nenhum favor!
— E
mocotó de carneiro?
— Se não
tiver uma lingüiça especial, é castigar no paio.
— E
coelho refogado?
—
Coelho? Dou um dedo por um coelhinho.
— E
chuchu?
—
Prefiro recheado.
— E
chow-chow?
—
Conheço: É um picles chinês maravilhoso.
— E os
quindins de Iaiá?
—
Adoro!
Perguntas e respostas dêsse mesmo tipo prolongam-se às vêzes por
mais de uma hora. O questionador é qualquer um; o questionado é um amigo nosso,
que terá aqui o nome de Mundico. Sua ficha: paraense, 50 anos, criatura
esplêndida, sempre a rir, nacionalista verde-amarelo, incapaz de matar uma
galinha, desde que não seja para comê-la ao môlho pardo ou assada.
Ora, os amigos de Mundico sabem que poderão percorrer tôdas as
cozinhas do mundo (e caviar? e lula-quebab? e
aluá de abacaxi?), que as respostas serão sempre interjetivas; totalmente
impossível descobrir um prato, um ingrediente, que êle não adore. Assim, onde
está a graça da brincadeira? Por que perder tempo a formular perguntas cujas
respostas são antecipadamente conhecidas?
A graça está simplesmente nos olhos de Mundico: a cada pergunta
daquela série infindável, os olhos dêle se acendem de arrebatamento; depois,
apagam-se; vem a outra pergunta, os olhos se iluminam (iluminam-se de fato, não
é maneira de falar); apagam-se; acendem-se.
Êsse pisca-pisca é para nós intensamente divertido; pois difícil
neste mundo tíbio é encontrar um sentimento um pouco acima da simples
sinceridade, um sentimento que se possa chamar de fervor – e fervor para com os
alimentos terrestres é o que lemos nos olhos acesos de Mundico. Muita gente
reza, muita gente ama, muita gente vive, muita gente come: rezar com fervor,
amar com fervor, viver cm fervor, comer com fervor, só os raros. Essa qualidade
santa da unção torna belo e respeitável o apetite universal de
Mundico.
Não gosto de ser exagerado e preciso ressalvar uma nuança; escrevi
que o apetite de Mundico era universal. Pois me desculpem. Devo confessar-lhes
que no carro-restaurante de um trem, há algum tempo, eu o vi garfar em seu prato
uma rodela de tomate e estendê-la a um companheiro. Como a expressão das pessoas
presentes fôsse de pasmo, Mundico sorriu e explicou-nos: “Tomate não é o meu
forte”.
Em longos anos, foi esta a única restrição culinária que ouvi de
seus lábios. A tal ponto isso me impressionou, que, aos poucos, dei comigo a
sentir uma certa antipatia pelo tomate.
A primeira vez que vi uma tracajá nadando na banheira de Mundico,
cheguei a ficar apreensivo. Seria alucinação? Hoje em dia me espanta é ver a
banheira sem a tartaruga do plantão. Elas vêm do Norte, através de uma complexa
rêde de solidariedade paraense, e acabam na faca em lindos domingos de sol.
Aliás, Mundico só podia ser do Pará. Já repararam em paraenses conversando?
Antônio recebeu tucupi... João vai me dar um vidro de murupi... Pedro vai
receber muçua... Paraense pode morar no Sul muitos anos, mas sofre de uma
nostalgia alimentar que só não chamo de telúrica porque essa palavra anda meio
ridicularizada.
As pessoas convencionais em geral não entendem nada, e são
incapazes de distinguir entre as diversas maneiras de apreciar a mesa. Gente
assim não compreenderá igualmente uma das mais bonitas histórias de Mundico. Uma
noite íamos em bando pescar em Itaipuaçu, e paramos no trevo do Tribobó para
jantar. Ao sair, Isaac comprou umas balas para Haroldinho, de sete anos de
idade. No carro de Haroldo, pai de Haroldinho, entrei eu na frente, Mundico e
Haroldinho atrás. Rádio ligado, sonolentos, calados, rodávamos pela estrada,
quando ouvi Mundico a cochichar para Haroldinho: — Me dá uma bala! Não tem mais.
— Deixa de ser pão-duro: me dá uma bala. — Já disse que não tem mais. — Estou
vendo bala aí no bôlso de sua blusa.
— Esta
eu não dou: é a última. — Última coisa nenhuma: então mostra.
Haroldinho cometeu a imprudência de tirar a bala do bôlso e
exibi-la a Mundico, que, mão de gato para a circunstância, arrebatou-lhe a bala,
tirou o papel, meteu a bala na bôca, e ainda zombou do garôto: “Desta vez, você
entrou bem”.
O convencional achará que um homem de cinqüenta anos, pai e avô,
capaz de tomar a última bala de uma criança de sete anos, é um monstro. Pois eu
lhes direi que só um adulto de coração limpo, sem sentimento de culpa, é capaz
de fazer uma tal monstruosidade.
Do mesmo modo, só uma pessoa pura afirmaria o que Mundico costuma
repetir em sua roda, quando se lembra do ano inteiro que ficou, por ordem
médica, sob rigoroso regime:
— Vocês ficam dizendo que bom mesmo é mulher! Vocês não sabem de
nada, e nem queiram saber! Bom mesmo é sal!
Texto extraído do livro "homenzinho na ventania", Editora do Autor - Porto Alegre, 1970, pág. 23.
Paulo Mendes Campos
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