sábado, 23 de agosto de 2014

Amóz Oz e a primazia do ser

              É muito comum escritores ouvirem uma pergunta que pode ser sintetizada assim: "De onde você tirou esse texto?" A ideia da origem, da procedência, e dos possíveis paralelos com outros livros ou com aspectos da realidade, sempre fascina os leitores. Desejam decifrar a mágica. Buscam uma fórmula, ou uma estratégia, que, quem sabe, poderiam depois repetir com o mesmo sucesso. Como se o método se antecipasse à escrita. A ideia é a de que, primeiro, o escritor planeja, teoriza, projeta e só depois disso _ com um caminho traçado e um destino seguro _ ele escreve.

          Um pequeno poema de Amós Oz, "Desperta o desejo", guardado na página 132 de "O mesmo mar" (Companhia das Letras), desmente e desmascara essa hipótese. Numa noite de chuva, surge no poeta "o desejo de ser o que eu teria sido/ se não soubesse o que se sabe". A vontade de "ser antes de conhecer,/ como as colinas". Ocorre que esse conhecimento na ignorância já está ali, ou o poema não se sustentaria de pé. É antes de conhecer, apenas apalpando, intuindo, adivinhando, que um escritor escreve. Sim, depois vem a parte iluminada: sobre o caos da criação se impõe o domínio da razão. Mas sem esse caos primitivo, sem esse "não saber", não haveria escrita. Tudo se inicia na face escura.

          O poeta deseja ser "como uma pedra na superfície da Lua". Esquecida, anterior ao nome e à palavra, em estado bruto e sólido. Não vista. Impondo-se pela força de ser, e não pela força da argumentação. Escreve Oz: "Lá está ela, silenciosa e segura/ durante toda a vida da prateleira". Esse estado de esquecimento é fundamental para o nascimento das coisas _ e não apenas da escrita. O próprio ato sexual é um apagar (um desmaio) que, só porque não pensa no que faz, mas apenas faz, chega a gerar uma vida. Também os escritores produzem nesse estado de letargia e olvido. As primeiras linhas se rabiscam às cegas, sem uma razão de ser, sem um destino _ como alguém que, de olhos vendados, se movimenta no deserto. 

          É desses primeiros impulsos, e seus registros, que enfim surge o material para a escrita. Surge a pedra que resiste solitária sobre a face da Lua, imóvel, esquecida, anterior a qualquer definição, anterior a qualquer cadeia de significado, a qualquer nome. Coisas brutas, brutalidade do real _ aquilo que uma escritora como Clarice Lispector, que deseja alcançar o que está atrás de detrás do pensamento, tanto buscou. E de onde tirou seus relatos magníficos. Esse mundo anterior ao pensamento é, também em nossa existência humana, o mundo original. É o começo de tudo _ caos absoluto sobre o qual, aos poucos, as ideias se desenham e ganham formas.

          Também o método, ou a estratégia, só vem depois. Só depois da experiência do caos, só depois da geração dos destroços que o representam, a razão enfim entra em cena e, como estratégia e método, impõe sua ordem. É um momento de grande risco, já que a ordem pode matar a escrita. Mas é também um momento absolutamente necessário, sem o qual nenhuma escrita seria compreensível. Toda escrita começa, portanto, como pedra. Começa esquecida, largada, entregue a sua própria ferocidade. Começa antes que se possa dizer, antes que o escritor possa, enfim, se expressar. Esse momento anterior é fundamental - e por isso guarda o caráter mágico que Amós Oz lhe atribui. É preciso coragem para enfrentá-lo _ é preciso estar desarmado para conseguir isso _ ou escrita alguma toma corpo.
 
José Castello
 

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