Se Deus escreve certo por linhas tortas, ou se “o diabo escreve torto por
linhas retas”, é a dúvida essencial que encontramos lendo “A Primavera da
Pontuação”, novo livro de Vitor Ramil (COSAC, 2014). O livro é uma brincadeira
escrita. Uma experiência desvairada no reino dos trocadilhos. Pra quem se
entende com eles, as risadas vão proliferar. O livro foi escrito para rir. Mas
rir com profundidade.
Para quem, como eu, tem verdadeiro medo de trocadilhos, é preciso ir com
calma. Eu fui. O tom amoroso do livro permite um senso de confiança: que o
encontro com aquele humor esquisito faz bem à mente. Confiei. Finalizada a
leitura, posso garantir que é fácil entrar na farra proposta pelo livro, a farra
da linguagem. Logo a gente descobre que é por aí que se deve ir à próxima página
encontrando com o Ponto Final alucinado como Asterisco, a Palavra-ônibus casada
com o pastor Caminho, Homúnculo, o Grande, Grego e Latino, os Compostos
Eruditos, o Reitartado, o cão Superlativo. Verdade que ler a “Glosação” ao
final, ajuda muito para quem, como eu, prefere, muitas vezes, as legendas às
piadas (me estarrece e encanta como certas pessoas conseguem falar quase tudo na
base do chiste, driblam fácil o Deus enganador de Descartes que enche nossa
cabeça de neuroses…).
Se a ingenuidade for constitutiva do leitor, esse livrinho muito engraçado,
um livrinho gracioso e cheio de gracejos, ajudará carinhosamente na formação da
saudável malícia que é o chiste. Nele mora um senso para a ironia, sem a qual a
vida vai se entregando ao mau humor ou, pior ainda, à falta de humor.
Não temos hoje o sentimento de que a ironia, aquele fio de ouro finíssimo que
sustenta o bom humor, anda em baixa e as piadas estão cada vez mais sem graça? O
clima ditatorial vivido em sociedade hoje favorece o emburrecimento pelo medo:
quem tem a coragem de rir invertendo o jogo da seriedade fascista muitas vezes
travestida nos espetáculos do tipo “stand up comedy”? A proliferação da
indústria cultural da piada é sinal de que a vida perdeu a graça. A graça não
tem mais vida.
“A Primavera da Pontuação” (como a de Praga, como a Árabe) sabe ser um ato
político no cenário do emburrecimento, irmão gêmeo do embrutecimento
generalizado. Só que o livro faz isso sendo uma espécie de peça auto-irônica: o
texto está rindo de si – rindo dos textos em geral – e nos convidando a rir um
pouco melhor. Talvez que o riso sofisticado precise de experiência viva… O tempo
e o esforço da leitura serão recompensados com inteligência real, devemos dizer
ao leitores preguiçosos que todos somos em alguma medida nos dias de hoje. Vale
deixar-se levar do começo ao fim, lembrando que Mário Quintana e Leminski estão
no espírito dessa prosa de Vitor Ramil. Não devemos esquecer que leitores de
Gombrowics e Hilda Hilst também poderão apreciar o volume.
Nesse reino dos trocadilhos os amantes das palavras e das gramáticas, vão se
divertir sabendo que a vida (ou o livro) é um livro (ou a vida) escrito em
linguagem cifrada na qual o bom entendedor é aquele que, sabendo ler, sabe
brincar. Enfim, esse está vivo.
Do Blog da Márcia Tiburi
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