domingo, 20 de abril de 2014

Tchékhov e a crítica

 
          Em minhas oficinas, tenho o hábito saudável de trabalhar com a correspondência de Anton Tchékhov. Uso suas cartas ao editor Suvórin, editadas pela Edusp. Uso também os dois volumes de seletas de cartas organizados por Piero Brunello e traduzidos no Brasil pela Martins Fontes. Mesmo quando não concordo com as teses de Tchékhov _ e isso acontece muitas vezes _ elas são fontes infindáveis de inspiração. E sobretudo de desafios para o pensamento. Pois de uma coisá o escritor russo não tinha medo: de pensar.

          Aprecio muito a noção de objetividade de Tchékhov _ e é bom pensar nela em um tempo em que a ideia de objetidade anda tão deturpada. Em uma carta ao dramaturgo e amigo Ivan Leóntiev, datada do ano de 1900, ele diz: "Seja objetivo, encare tudo isso com olhos de homem bom, ou seja, com seus próprios olhos". Tchekhov não descarta a importância da subjetividade ("seus próprios olhos") na construção da objetividade. Ao contrário, ele a enfatiza. Diz ainda ao amigo: "Deus lhe deu um coração bom, terno, então trate de usá-lo, escreva com leveza, com serenidade, sem pensar nas ofensas recebidas". 

          A fórmula proposta por Tchékhov é, de certo modo, simples: o escritor deve escrever centrado em si mesmo. Deve observar o mundo objetivo, mas sabendo sempre que esse mundo lhe chega filtrado por seus próprios olhos. Nem a objetivida exclui a subjetividade, nem a subjetividade exclue a objetividade. Elas se enriquecem e se complementam. O importante é não se afastar de si. É não trair-se _ ainda que com o desejo tolo de se superar.

          O que é bem diferente do escritor julgar-se dono da verdade. A verdade singular é preciosa justamente porque não pretende ser a verdade toda, mas apenas um aspecto dela, Tchékhov nos leva a ver. Uma parte, uma possibilidade, uma fração. Ninguém tem a verdade toda e por isso, mesmo quando trata dos grandes painéis sociais, o escritor deve fugir da posição de crítico do social. Escritor e crítico, alerta-nos Tchékhov, são figuras muito diferentes. É um grande perigo confundi-las.

          O ficionista não é um crítico. Escrever uma novela ou uma peça de teatro baseadas na vida russa da virada do século 20 é muito diferente de comportar-se como um crítico dessa mesma vida. O escritor recorta, sim, o que vê _ e ao recortar, ele faz escolhas. Inclui isso, descarta aquilo, pesa, avalia, decide. Mas não é papel do escritor criticar aquilo que reproduz. A crítica que lhe cabe está nas próprias escolhas e apenas nelas. 

          Não deve também escrever movido pelas inevitáveis rusgas e invejas que proliferam no meio literário, ele alerta. "Perdoe todos aqueles que o ofenderam, não lhes dê confiança e, repito, ponha-se a escrever", diz Tchékhov ao amigo em dificuldades. "Trate a si mesmo e ao seu dom com justiça, deixe seu navio singrar o mar sem fim, não vá ancorá-lo na Fontanka" (referindo-se a um dos rios que atravessam a cidade de São Petersburgo, na Rússia). A zoeira do meio literário deve ser descartada, assim como as críticas _ e, por que não, também os elogios _ que ela necessariamente inclui. De certa forma muito sutil, o escritor deve fechar-se em si.

          E deve deixar todo esse murmúrio para trás para fixar-se apenas naquilo que vê. Naquilo que, sendo Leóntiev, ou seja ele quem for, vê na sua perspectiva pessoal e intransferível. Tchékhov me leva a pensar que temos apenas partes do real, mas nunca o real inteiro. Isso não diminui o valor daquilo que observamos _ e que, se somos escritores, transmitimos em nossos textos. Críticas virão de todos os lados, o que só estimulará no escritor a vontade (vingativa?) de ser crítico também. Mas deve sempre descartá-la, deixar essa função a seus leitores e prosseguir, impassível, em sua própria _ e única _ navegação.
 
 José Castello
(www.oglobo.com.br/blogs/aliteraturanapoltrona/josecastello/16-04-2014)

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